Homoerostismo e Transcendentalismo em Chama-me pelo teu nome
Chama-me pelo teu nome é um
romance de André Aciman publicado em 2007 e traduzido para português em 2018. O
primeiro problema que se nos depara ante este livro prende-se com a sua
categorização: se optarmos por inseri-lo na literatura
homoerótica (seja isso o que for!), imediatamente nos apercebemos que
estamos longe do cunho maioritário desse tipo de literatura: quer seja este um realismo puro e
duro como o de Michael Cunningham, o de Edmund White, o de Hervé Guibert ou o
de Yves Navarre; quer seja a metáfora política ao gosto do The line of beauty de Hollinghurst, quer ainda de um decadentismo
ao jeito do Les nuits fauves de Cyril
Collard, no entanto, a linha moralmente titubeante de Henry de Montherlant ou
de Julien Green também não convém a esta obra. Assim, penso que o fascínio
deste livro tem a ver com o facto da narrativa se adequar plenamente a outro tipo
de realismo, o poético, tal como o podemos encontrar em Philippe Besson, em
Forster, no Camere separate de Pier
Vittorio Tondelli ou, até mesmo, no Verwirrung der
Gefühle de Stefan Zweig. A segunda dificuldade
para a apreensão da obra advém do seu assunto: estamos perante uma análise em
torno do desejo e da paixão? Estamos perante uma visão espartilhadora de uma
forma de sentir em dada orientação sexual, que insiste em traçar denominadores
comuns biofisiológicos, esquecendo vetores psicossociais? Ou, de um modo mais elementar,
mas seguramente mais justo: estamos, pura e simplesmente, perante um romance de
amor? No entanto, esta nova denominação, conduz-nos a uma outra panóplia de
questões: o que queremos dizer quando falamos de amor?, conceito de tal modo extenso que, ao ser enunciado, tanto
pode dizer muito como perder-se na vacuidade e na indeterminação.
Em Chama-me
pelo teu nome, o amor que aqui sobressai
tem uma feição incomum na ficção contemporânea. Que amor é esse, pois, de
que nos fala Aciman neste romance? Tentemos ler a obra à luz de três autores
incontornáveis: Platão, Sade e Stendhal. Os dois primeiros tratados da nossa
cultura sobre o amor são o Fedro e o Banquete: relativamente ao primeiro, o
romance de Aciman tem aproximações, mas também dissemelhanças: não há dúvida
que é o sensível (Olivier ante o olhar de
Elio) que despoleta todo um processo e não há dúvida também que o conhecimento
das duas personagens tem um caráter de re-conhecimento, do despertar de algo
que aguardava rememoração, mas é igualmente verdade que, ao contrário do
filósofo grego, o sensível, o corpo e os desejos não são relegados para um
qualquer monturo como matéria imprestável e espúria, antes pelo contrário,
esses territórios são até fatores coadjuvantes da maturação e do aperfeiçoamento.
Por conseguinte, percebe-se que o sentimento amoroso que trespassa o romance de
André Aciman jamais se poderia identificar com o penúltimo discurso do Banquete (o de Sócrates), o amor esmiuçado em Chama-me pelo teu nome não é um
panegírico do aperfeiçoamento moral através da obliteração do corpo, é o
alcançar de um cume em que uma totalidade dinâmica e abrangente está envolvida.
Se o sentir ocidental foi fortemente influenciado por Platão e pelas suas
dicotomias, veja-se, por exemplo, o Estudios
sobre el amor de Ortega y Gasset, não é menos verdade que esse universo tem
sofrido enormes reveses. Em Sade, por exemplo, a virtude encontra os seus infortúnios,
ele “opera a transmutação de um comportamento de casta num desafio único”
(Chantal Thomas, 1994: 75): o seu Os
cento e vinte dias de Sodoma, que ficou concluído trinta e sete dias a
contar de 22 de outubro de 1785 é um ominoso retábulo libertino aos olhos de
uma moral de elite. Aqui, urge também inventariar aproximações e divergências
com o romance de Aciman: primeiro, seria curial fazer um levantamento das vezes
em que Elio é apelidado de debochado; dois,
já que quer Elio quer Olivier (este deixou mesmo uma namorada intermitente nos E.U.A.) vão, ao longo
do romance, mantendo relações sexuais de tipo heterossexual, mas sem que isso
colida com a relação que existe entre ambos, será interessante comparar
com o que Sade afirma no quarto
parágrafo do Segundo Dia da obra
referida, onde se enfatiza um dado estereótipo sexual relativo à prática
masturbatória; três, alguns dos momentos mais significativos do romance de
Aciman têm um forte cunho abjecionista, contudo, distinguem-se das abordagens
de Os cento e vinte dias… (Sade,
2000: 229-232), abordagens estas que Pasolini no seu Salò viria a associar ao universo ficcional do fascismo italiano,
contudo, as cenas do pêssego e das fezes, no romance de André Aciman, inserem-se
num paradigma de valores e modelos comportamentais completamente alheio a Sade,
e adquirem, pelas suas ritualização gestual e verbalização, um registo sacro e
uma poeticidade que jamais interessariam ao filósofo francês. Finalmente, e
nesta caraterização do sentimento amoroso que encontramos em Chama-me pelo teu nome, não podemos deixar
de fora o estudo que Stendhal dedica ao tema. No Livro Primeiro, parte I, do seu De
l’Amour, o autor enumera os tipos de amor e não restam dúvidas que aquilo
que se abateu, no romance de Aciman, sobre Elio e Olivier se integra na
primeira categoria stendhaliana: o amor-paixão, aquele que o escritor francês
diz ter sido vivido por Mariana Alcoforado e por Heloísa e Abelardo: é um amor
portentoso, avassalador, impossível de ser subjugado por quaisquer estratégias
distrativas; o que acontece entre as duas personagens é da ordem do raro e é
isso mesmo que o pai de Elio, perto do final do romance, pondo todas as cartas
em cima da mesa perante o filho, e baseando-se na amizade de Montaigne por
Étienne de la Boétie, resolve frisar: És
demasiado esperto para não perceber como é especial aquilo que vocês viveram
(…) ambos tiveram a sorte de se cruzarem porque são muito bons (…). No presente
há tristeza. Não invejo a dor. Mas invejo a tua dor. (Aciman, 2018: 254-256).
Sem entrarmos na Teoria da Cristalização do De
l’ Amour (Cf. Livro 1º, Parte II), podemos dizer algo semelhante ao que
Descartes disse, para o seu método, da Geometria e da Aritmética, ou seja: para
a elaboração de uma ideia de amor que
pespegaria no seu Chama-me pelo teu nome,
André Aciman vai ao que uma dada memória cultural exala de Platão e de
Sade, anula o que não lhe interessa e retém o que no romance dará corpo a um
sentir marcado pela autenticidade, pelo poético, pelo fusional e,
consequentemente, pelo sagrado.
Chama-me
pelo teu nome é um romance assente numa certa linearidade narrativa, que
vira deliberadamente as costas a qualquer tipo de fragmentação ou de distopia
demasiado vincada. A ação decorre em 1983, embora na última parte da obra, e
acompanhando o envelhecimento das duas personagens, sejamos transportados para
as décadas seguintes. O espaço da narração é predominantemente o norte de
Itália, todavia, as terceira e quarta partes do romance são concomitantes de
uma certa dispersão espacial: Roma, os E.U.A. e de novo o norte de Itália. Elio
assume simultaneamente a função de narrador e o papel de personagem, será ele
que, situado num tempo, que surgirá depois também no final do livro, e através
de um extenso e minucioso flashback, irá distender a teia da intriga; nos irá
contar tudo o que determinou (e continuará a determinar?) a sua vida:
Todos
os anos os pais de Elio – o Prof. Perleman, académico especializado em cultura
greco-latina e a sua mulher, Annella Perlman, tradutora – alojam, durante as
férias de verão, algum jovem professor universitário a troco de este último
auxiliar o académico veterano nos seus trabalhos de investigação. O efeito de
Olivier, o locatário desse ano, sobre Elio Perleman, um adolescente de
dezassete anos, e de uma cultura invulgar para a sua idade, é imediato. O interessante
nesta primeira parte do romance, é a maneira como Aciman articula toda uma
mundividência contemporânea com um intrasubjetivismo à la Proust : Mas pode ter
começado mais tarde do que julgo, sem que tivesse reparado de todo. Vemos
alguém, mas na verdade não o vemos, ele está à espera (…) ficamos a decifrar
aquilo que, sendo desconhecido para nós, cresceu debaixo do nosso nariz o tempo
todo…
(p 17); Claro que Olivier não
fazia ideia do que eu estivera a pensar minutos antes, mas as formas
voluptuosas e firmes do alperce, com uma covinha no meio, lembravam-me de como
o seu corpo se esticava por entre os ramos das árvores, e o seu rabo redondo e
rijo reproduzia as cores e o formato da fruta (p 48); Mas todas essas horas eram
marcadas pelo medo, como se o medo fosse um espetro inquietante, ou um pássaro
estranho e perdido (…) Eu não sabia do que tinha medo (…) nem por que razão
essa coisa, que tão facilmente
provoca pânico, por vezes parecia esperança… (p 74). Poder-se-á, então,
reiterar, que nos é impossível ler a primeira parte deste romance, com as
estratégias perversas de Elio e o sofrimento que toda a ansiedade antecipatória
lhe ia provocando, sem trazermos Proust à liça, sem nos lembrarmos das
associações, das recuperações do passado, do fantasiar, enfim, de todos os
processos mentais que atravessam o Em
busca do tempo perdido. Convém, no entanto, enfatizar a estranheza deste
relacionamento, e este é o nó górdio do romance: que pretendem estas duas
pessoas uma da outra? A resposta está logo na primeira parte do livro e
surge-nos através de uma lucubração de Elio Perleman: A palavra amizade veio-me à cabeça. Mas a amizade, como é definida
por toda a gente, era-me estranha, algo estéril, que não me interessava. O que
talvez quisesse, desde o momento em que ele saiu do táxi até que nos despedimos
em Roma, era aquilo que todos os humanos pedem, aquilo que torna a vida vivível
(p 42). Ora, o que está aqui em causa, não é um amor exclusivamente
espiritual à boa maneira platónica e que Aristóteles corroboraria depois na sua
Ética Nicómaco, por sua vez, não é
também um amor firmado na luxúria e no gratuito, nem tão-pouco algo rondando a
perturbação obsessivo-compulsiva com todo um universo emotivo esgueirando-se da
reflexão. Não! O que está aqui em causa é a busca (e o encontrar) de algo que dê
sentido à vida; a procura de um fundamento para o estar-aqui, fundamento esse
que possa transcender as personagens e justificá-las.
Na segunda parte do romance, surge-nos a
célebre cena do pêssego, fortemente atenuada por Luca Guadagnino e James Ivory
na adaptação que fizeram desta obra para o cinema. Se em momentos anteriores, o
adolescente Elio, ávido de experiências, nos faria suspeitar da sua queda para
certas parafilias, nomeadamente aquando do seu desejo de cheirar os calções de
Olivier, a cena do pêssego opera uma mudança de valoração no sentido do sexual
para o sacrificial – o leitor é definitivamente arrancado de um bordel ou do
quarto escuro de um qualquer bar, para um rito de sacralização, para essa parte de
uma dada Cosmogonia onde a semente alicerça e revivifica. No fetichismo o
objetal é sobrevalorizado, a pulsão exacerba-se e dispersa-se; no sacrificial
ou religioso o processo é inverso: o valor do objeto anula-se, a pulsão
afunila-se e adquire uma feição outra, geralmente redentora: Levantei-me e peguei num dos pêssegos,
abri-o ao meio com os polegares, tirei o caroço, que pus na mesa, e suavemente
aproximei de mim a penugem, na casca corada, e pressionei-o até que o fruto
aberto deslizou pelo meu caralho (p 171)
A cena prolonga-se por algumas páginas até à ingestão deliberada do fruto por
Olivier, que desperta em Elio, não só a culpa, mas a consciência de que estava
agora num caminho sem retorno, num caminho que o transcendia: Fui ao seu encontro e abafei os soluços no
ombro dele. Estava a chorar porque nunca um estranho fora tão amável ou tinha
ido tão longe por mim… “ (p 174) Perante tudo isto, estamos mais perto do
sacrifício do Antínoo da Yourcenar e de alguns heróis da Mary Renault do que de
toda a obra de Sade.
Na terceira e quarta partes da obra, muito
menos extensas do que as duas anteriores, Elio vivencia o ambiente da vida
literária com toda a parafernália a que esta se costuma associar: lançamento de
livros, debates, vida noturna, etc., mas vive também a antecipação da perda e o
aprofundar da intimidade, e é nesta intimidade que ocorre a cena das fezes, onde
se conclui que a aura desse tipo de momentos jamais poderia pertencer a Sade ou
Pasolini: Agora os nossos corpos não têm
segredos (…) Não queria segredos, filtros, nada entre nós. Mal sabia que, se
desfrutava do arroubo de candura que nos unia mais, de cada vez que jurávamos o
meu corpo é o teu corpo (…) O que sabia era que não me sobrava nada para
esconder dele. Nunca me sentira tão livre e em segurança na vida. (pp
198-199). Confirma-se assim o que já se havia dito: a maturação e ascensão não
é feita contra o corpo, mas com ele; que corre a par de uma incorporação no
outro, e de tal modo que o nome de cada um é já o nome desse outro, portanto,
quando o quiser chamar, chamá-lo-ei pelo
meu nome. Eis dois humanos, que por acaso são estes mas poderiam ser
outros, assumindo uma energia que desconhecem e, como se dependesse
exclusivamente deles, põem-se a ilustrar o princípio unificador de Empédocles:
o Amor, que ao contrário da Discórdia, junta tudo o que há.
Na quarta parte do livro, de poucas páginas,
a ação acelera-se: a partida de Olivier, subitamente a viver nos E.U.A. casado
e com dois filhos, o doutoramento de Elio nesse país, um ou outro reencontro
breve, a separação de Olivier, a passagem do tempo, das décadas, mas, e como no pensamento mágico, tudo o que esteve
em contacto com um corpo jamais perderá esse elo, o que possibilitará depois futuras
maldições ou bênçãos: És a única pessoa
de quem gostaria de me despedir quando morrer, porque só então esta coisa, a
que chamamos vida, fará sentido (p 274). Não importa saber quem profere o
desejo, já que os nomes e as vidas se fundiram, importa sim essa intuição
última do sentido da vida, e é por ela que André Aciman foge a um
ultrarromantismo balofo e corriqueiro, optando por um realismo poético através
do qual derrama toda uma quantidade de inquietações simultaneamente
existenciais e metafísicas.
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Victor Oliveira Mateus. Revista (Eletrónica) Caliban, Lisboa, 16 May 2019.
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Victor Oliveira Mateus. Revista (Eletrónica) Caliban, Lisboa, 16 May 2019.
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