quinta-feira, 16 de maio de 2019



         Homoerostismo e Transcendentalismo em Chama-me pelo teu nome



   Chama-me pelo teu nome é um romance de André Aciman publicado em 2007 e traduzido para português em 2018. O primeiro problema que se nos depara ante este livro prende-se com a sua categorização: se optarmos por inseri-lo na literatura homoerótica (seja isso o que for!), imediatamente nos apercebemos que estamos longe do cunho maioritário desse tipo de   literatura: quer seja este um realismo puro e duro como o de Michael Cunningham, o de Edmund White, o de Hervé Guibert ou o de Yves Navarre; quer seja a metáfora política ao gosto do The line of beauty de Hollinghurst, quer ainda de um decadentismo ao jeito do Les nuits fauves de Cyril Collard, no entanto, a linha moralmente titubeante de Henry de Montherlant ou de Julien Green também não convém a esta obra. Assim, penso que o fascínio deste livro tem a ver com o facto da narrativa se adequar plenamente a outro tipo de realismo, o poético, tal como o podemos encontrar em Philippe Besson, em Forster, no Camere separate de Pier Vittorio Tondelli ou, até mesmo, no Verwirrung der Gefühle de Stefan Zweig. A segunda dificuldade para a apreensão da obra advém do seu assunto: estamos perante uma análise em torno do desejo e da paixão? Estamos perante uma visão espartilhadora de uma forma de sentir em dada orientação sexual, que insiste em traçar denominadores comuns biofisiológicos, esquecendo vetores psicossociais? Ou, de um modo mais elementar, mas seguramente mais justo: estamos, pura e simplesmente, perante um romance de amor? No entanto, esta nova denominação, conduz-nos a uma outra panóplia de questões: o que queremos dizer quando falamos de amor?, conceito de tal modo extenso que, ao ser enunciado, tanto pode dizer muito como perder-se na vacuidade e na indeterminação.
   Em Chama-me pelo teu nome, o amor que aqui sobressai tem uma feição incomum na ficção contemporânea. Que amor é esse, pois, de que nos fala Aciman neste romance? Tentemos ler a obra à luz de três autores incontornáveis: Platão, Sade e Stendhal. Os dois primeiros tratados da nossa cultura sobre o amor são o Fedro e o Banquete: relativamente ao primeiro, o romance de Aciman tem aproximações, mas também dissemelhanças: não há dúvida que é o sensível (Olivier ante o olhar de Elio) que despoleta todo um processo e não há dúvida também que o conhecimento das duas personagens tem um caráter de re-conhecimento, do despertar de algo que aguardava rememoração, mas é igualmente verdade que, ao contrário do filósofo grego, o sensível, o corpo e os desejos não são relegados para um qualquer monturo como matéria imprestável e espúria, antes pelo contrário, esses territórios são até fatores coadjuvantes da maturação e do aperfeiçoamento. Por conseguinte, percebe-se que o sentimento amoroso que trespassa o romance de André Aciman jamais se poderia identificar com o penúltimo discurso do Banquete (o de Sócrates), o amor esmiuçado em Chama-me pelo teu nome não é um panegírico do aperfeiçoamento moral através da obliteração do corpo, é o alcançar de um cume em que uma totalidade dinâmica e abrangente está envolvida. Se o sentir ocidental foi fortemente influenciado por Platão e pelas suas dicotomias, veja-se, por exemplo, o Estudios sobre el amor de Ortega y Gasset, não é menos verdade que esse universo tem sofrido enormes reveses. Em Sade, por exemplo, a virtude encontra os seus infortúnios, ele “opera a transmutação de um comportamento de casta num desafio único” (Chantal Thomas, 1994: 75): o seu Os cento e vinte dias de Sodoma, que ficou concluído trinta e sete dias a contar de 22 de outubro de 1785 é um ominoso retábulo libertino aos olhos de uma moral de elite. Aqui, urge também inventariar aproximações e divergências com o romance de Aciman: primeiro, seria curial fazer um levantamento das vezes em que Elio é apelidado de debochado; dois, já que quer Elio quer Olivier (este deixou mesmo uma namorada intermitente nos E.U.A.) vão, ao longo do romance, mantendo relações sexuais de tipo heterossexual, mas sem que isso colida com a relação que existe entre ambos, será interessante comparar com  o que Sade afirma no quarto parágrafo do Segundo Dia da obra referida, onde se enfatiza um dado estereótipo sexual relativo à prática masturbatória; três, alguns dos momentos mais significativos do romance de Aciman têm um forte cunho abjecionista, contudo, distinguem-se das abordagens de Os cento e vinte dias… (Sade, 2000: 229-232), abordagens estas que Pasolini no seu Salò viria a associar ao universo ficcional do fascismo italiano, contudo, as cenas do pêssego e das fezes, no romance de André Aciman, inserem-se num paradigma de valores e modelos comportamentais completamente alheio a Sade, e adquirem, pelas suas ritualização gestual e verbalização, um registo sacro e uma poeticidade que jamais interessariam ao filósofo francês. Finalmente, e nesta caraterização do sentimento amoroso que encontramos em Chama-me pelo teu nome, não podemos deixar de fora o estudo que Stendhal dedica ao tema. No Livro Primeiro, parte I,  do seu De l’Amour, o autor enumera os tipos de amor e não restam dúvidas que aquilo que se abateu, no romance de Aciman, sobre Elio e Olivier se integra na primeira categoria stendhaliana: o amor-paixão, aquele que o escritor francês diz ter sido vivido por Mariana Alcoforado e por Heloísa e Abelardo: é um amor portentoso, avassalador, impossível de ser subjugado por quaisquer estratégias distrativas; o que acontece entre as duas personagens é da ordem do raro e é isso mesmo que o pai de Elio, perto do final do romance, pondo todas as cartas em cima da mesa perante o filho, e baseando-se na amizade de Montaigne por Étienne de la Boétie, resolve frisar: És demasiado esperto para não perceber como é especial aquilo que vocês viveram (…) ambos tiveram a sorte de se cruzarem porque são muito bons (…). No presente há tristeza. Não invejo a dor. Mas invejo a tua dor. (Aciman, 2018: 254-256). Sem entrarmos na Teoria da Cristalização do De l’ Amour (Cf. Livro 1º, Parte II), podemos dizer algo semelhante ao que Descartes disse, para o seu método, da Geometria e da Aritmética, ou seja: para a elaboração de uma ideia de amor que pespegaria no seu Chama-me pelo teu nome, André Aciman vai ao que uma dada memória cultural exala de Platão e de Sade, anula o que não lhe interessa e retém o que no romance dará corpo a um sentir marcado pela autenticidade, pelo poético, pelo fusional e, consequentemente, pelo sagrado.
   Chama-me pelo teu nome é um romance assente numa certa linearidade narrativa, que vira deliberadamente as costas a qualquer tipo de fragmentação ou de distopia demasiado vincada. A ação decorre em 1983, embora na última parte da obra, e acompanhando o envelhecimento das duas personagens, sejamos transportados para as décadas seguintes. O espaço da narração é predominantemente o norte de Itália, todavia, as terceira e quarta partes do romance são concomitantes de uma certa dispersão espacial: Roma, os E.U.A. e de novo o norte de Itália. Elio assume simultaneamente a função de narrador e o papel de personagem, será ele que, situado num tempo, que surgirá depois também no final do livro, e através de um extenso e minucioso flashback, irá distender a teia da intriga; nos irá contar tudo o que determinou (e continuará a determinar?) a sua vida:
Todos os anos os pais de Elio – o Prof. Perleman, académico especializado em cultura greco-latina e a sua mulher, Annella Perlman, tradutora – alojam, durante as férias de verão, algum jovem professor universitário a troco de este último auxiliar o académico veterano nos seus trabalhos de investigação. O efeito de Olivier, o locatário desse ano, sobre Elio Perleman, um adolescente de dezassete anos, e de uma cultura invulgar para a sua idade, é imediato. O interessante nesta primeira parte do romance, é a maneira como Aciman articula toda uma mundividência contemporânea com um intrasubjetivismo à la Proust : Mas pode ter começado mais tarde do que julgo, sem que tivesse reparado de todo. Vemos alguém, mas na verdade não o vemos, ele está à espera (…) ficamos a decifrar aquilo que, sendo desconhecido para nós, cresceu debaixo do nosso nariz o tempo todo…  (p 17); Claro que Olivier não fazia ideia do que eu estivera a pensar minutos antes, mas as formas voluptuosas e firmes do alperce, com uma covinha no meio, lembravam-me de como o seu corpo se esticava por entre os ramos das árvores, e o seu rabo redondo e rijo reproduzia as cores e o formato da fruta (p 48); Mas todas essas horas eram marcadas pelo medo, como se o medo fosse um espetro inquietante, ou um pássaro estranho e perdido (…) Eu não sabia do que tinha medo (…) nem por que razão essa coisa, que tão facilmente provoca pânico, por vezes parecia esperança… (p 74). Poder-se-á, então, reiterar, que nos é impossível ler a primeira parte deste romance, com as estratégias perversas de Elio e o sofrimento que toda a ansiedade antecipatória lhe ia provocando, sem trazermos Proust à liça, sem nos lembrarmos das associações, das recuperações do passado, do fantasiar, enfim, de todos os processos mentais que atravessam o Em busca do tempo perdido. Convém, no entanto, enfatizar a estranheza deste relacionamento, e este é o nó górdio do romance: que pretendem estas duas pessoas uma da outra? A resposta está logo na primeira parte do livro e surge-nos através de uma lucubração de Elio Perleman: A palavra amizade veio-me à cabeça. Mas a amizade, como é definida por toda a gente, era-me estranha, algo estéril, que não me interessava. O que talvez quisesse, desde o momento em que ele saiu do táxi até que nos despedimos em Roma, era aquilo que todos os humanos pedem, aquilo que torna a vida vivível (p 42). Ora, o que está aqui em causa, não é um amor exclusivamente espiritual à boa maneira platónica e que Aristóteles corroboraria depois na sua Ética Nicómaco, por sua vez, não é também um amor firmado na luxúria e no gratuito, nem tão-pouco algo rondando a perturbação obsessivo-compulsiva com todo um universo emotivo esgueirando-se da reflexão. Não! O que está aqui em causa é a busca (e o encontrar) de algo que dê sentido à vida; a procura de um fundamento para o estar-aqui, fundamento esse que possa transcender as personagens e justificá-las.
   Na segunda parte do romance, surge-nos a célebre cena do pêssego, fortemente atenuada por Luca Guadagnino e James Ivory na adaptação que fizeram desta obra para o cinema. Se em momentos anteriores, o adolescente Elio, ávido de experiências, nos faria suspeitar da sua queda para certas parafilias, nomeadamente aquando do seu desejo de cheirar os calções de Olivier, a cena do pêssego opera uma mudança de valoração no sentido do sexual para o sacrificial – o leitor é definitivamente arrancado de um bordel ou do quarto escuro de um qualquer bar, para um rito de sacralização, para essa parte de uma dada Cosmogonia onde a semente alicerça e revivifica. No fetichismo o objetal é sobrevalorizado, a pulsão exacerba-se e dispersa-se; no sacrificial ou religioso o processo é inverso: o valor do objeto anula-se, a pulsão afunila-se e adquire uma feição outra, geralmente redentora: Levantei-me e peguei num dos pêssegos, abri-o ao meio com os polegares, tirei o caroço, que pus na mesa, e suavemente aproximei de mim a penugem, na casca corada, e pressionei-o até que o fruto aberto deslizou pelo meu caralho (p 171) A cena prolonga-se por algumas páginas até à ingestão deliberada do fruto por Olivier, que desperta em Elio, não só a culpa, mas a consciência de que estava agora num caminho sem retorno, num caminho que o transcendia: Fui ao seu encontro e abafei os soluços no ombro dele. Estava a chorar porque nunca um estranho fora tão amável ou tinha ido tão longe por mim… “ (p 174) Perante tudo isto, estamos mais perto do sacrifício do Antínoo da Yourcenar e de alguns heróis da Mary Renault do que de toda a obra de Sade.
   Na terceira e quarta partes da obra, muito menos extensas do que as duas anteriores, Elio vivencia o ambiente da vida literária com toda a parafernália a que esta se costuma associar: lançamento de livros, debates, vida noturna, etc., mas vive também a antecipação da perda e o aprofundar da intimidade, e é nesta intimidade que ocorre a cena das fezes, onde se conclui que a aura desse tipo de momentos jamais poderia pertencer a Sade ou Pasolini: Agora os nossos corpos não têm segredos (…) Não queria segredos, filtros, nada entre nós. Mal sabia que, se desfrutava do arroubo de candura que nos unia mais, de cada vez que jurávamos o meu corpo é o teu corpo (…) O que sabia era que não me sobrava nada para esconder dele. Nunca me sentira tão livre e em segurança na vida. (pp 198-199). Confirma-se assim o que já se havia dito: a maturação e ascensão não é feita contra o corpo, mas com ele; que corre a par de uma incorporação no outro, e de tal modo que o nome de cada um é já o nome desse outro, portanto, quando o quiser chamar, chamá-lo-ei pelo meu nome. Eis dois humanos, que por acaso são estes mas poderiam ser outros, assumindo uma energia que desconhecem e, como se dependesse exclusivamente deles, põem-se a ilustrar o princípio unificador de Empédocles: o Amor, que ao contrário da Discórdia, junta tudo o que há.
   Na quarta parte do livro, de poucas páginas, a ação acelera-se: a partida de Olivier, subitamente a viver nos E.U.A. casado e com dois filhos, o doutoramento de Elio nesse país, um ou outro reencontro breve, a separação de Olivier, a passagem do tempo, das décadas, mas,  e como no pensamento mágico, tudo o que esteve em contacto com um corpo jamais perderá esse elo, o que possibilitará depois futuras maldições ou bênçãos: És a única pessoa de quem gostaria de me despedir quando morrer, porque só então esta coisa, a que chamamos vida, fará sentido (p 274). Não importa saber quem profere o desejo, já que os nomes e as vidas se fundiram, importa sim essa intuição última do sentido da vida, e é por ela que André Aciman foge a um ultrarromantismo balofo e corriqueiro, optando por um realismo poético através do qual derrama toda uma quantidade de inquietações simultaneamente existenciais e metafísicas.
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Victor Oliveira Mateus. Revista (Eletrónica) Caliban, Lisboa, 16 May 2019.
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