sexta-feira, 7 de junho de 2019


    Não há esquecimento
    (Sonata)


Se me perguntais onde estive,
devo dizer "Acontece".
Devo falar do chão que as pedras escurecem,
do rio que permanecendo se destrói:
não sei senão as coisas que os pássaros perdem,
o mar que ficou para trás ou minha irmã chorando.
Porquê tantas regiões, porquê um dia
se junta a outro dia? Porquê uma negra noite
se acumula na boca? Porquê mortos?
Se me perguntais de onde venho, tenho que conversar com coisas gastas,
com utensílios demasiado amargos,
com grandes animais muitas vezes já podres
e com meu angustiado coração.

Não são as lembranças que se atravessaram,
nem a pomba amarelenta que no esquecimento dorme,
mas sim faces com lágrimas,
dedos na garganta,
e o que se desmorona das folhas:
a escuridão de um dia decorrido,
de um dia alimentado com o nosso triste sangue.

Eis aqui violetas, andorinhas,
tudo o que nos agrada e aparece
nos doces cartões-de-visita de longa cauda
onde passeiam o tempo e a doçura,

Mas não penetremos para além desses dentes
não mordamos as cascas que o silêncio acumula,
pois não sei que responder:
há tantos mortos,
e tantos molhes que o sol rubro partia,
e tantas cabeças que batem nos navios,
e tantas mãos que encerraram já beijos,
e tantas coisas que desejo esquecer.
.
.
 Neruda, Pablo. Antologia. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 1998, pp 125-127 (Tradução de José Bento).
.
.
.