quinta-feira, 14 de novembro de 2019
Quero dizer-vos que estou aqui
e me pergunto de onde venho,
como cheguei,
quem me pegou na mão e disse:
Vem e fala, vem e escreve.
E eu falei e eu escrevi.
Depois foi só esperar
que a voz soubesse
o recado das ondas
e as palavras fossem o trilho
onde toda a aventura é uma campina aberta
à espera da semente que a fecunde.
Não sei se sou a terra ou sou o grão,
se sou a mão ou o arado.
Sei que vou continuar na voz do vento,
no vaivém das marés,
sem perguntar se vasta é a planície,
quem me espera na outra face da Lua.
Ninguém me deu o livro das verdades,
mas eu vou.
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Quitério, Licínia. Travessia. S/c.: Poética Edições, 2019, p 62.
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quarta-feira, 13 de novembro de 2019
A minha terra é a cama onde me deito,
a mesa dos manjares e da tristeza,
o braço amigo mesmo longe,
mesmo frio.
A minha história é a da outra
que foi pelos caminhos
do cristal e da ferrugem
e voltou pálida e estranha,
com olhos plenos de paisagens
onde navegavam árvores ardentes.
Os ossos das casas espreitam
o latido dos cães,
a pressa das lagartixas.
Mas há o debrum azul
a serenar tempestades,
o oiro matinal a engravidar searas,
o luar a amparar os fugitivos.
Assim a terra onde me vivo,
me prossigo.
Por vezes canto e espero.
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Quitério, Licínia. Travessia. S/c.: Poética Edições, 2019, p 26.
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domingo, 10 de novembro de 2019
Podem ver aqui um vídeo sobre o ROIZ 1º Encontro de Música e Poesia Luso-Hispano-Americana
Zona Histórica de Castelo Branco: 18/ 18 novembro/ 2019.
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https://www.youtube.com/watch?v=rRYnQzlMWgA&feature=youtu.be
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sábado, 9 de novembro de 2019
A apresentação do livro Travessia de Licínia Quitério decorreu na Biblioteca Camões (ao Chiado, Lisboa) no dia 9 de novembro de 2019. Segue o texto de apresentação da obra:
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Algumas
notas sobre o livro Travessia de
Licínia Quitério
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Travessia é a nova obra de Licínia Quitério. O livro
apresenta-se-nos como um conjunto de poemas, predominantemente longos, com
versos livres, ou heterométricos, sendo a estrutura poemática sempre
monostrófica e sem qualquer preocupação de rima. Neste sentido, ao nível
formal, poder-se-á dizer que Travessia se
insere no que tem sido a produção que se tem seguido ao Modernismo e ao
Pós-Modernismo. Contudo, se quanto à forma este livro foge às formas fixas, já
ao nível semântico há uma deliberada opção por todo léxico proveniente da
tradição: o vento, as falésias, o coração, o mar, as casas, etc. O motivo desta conjugação, desta enxertia
estilística, não se prende com deliberações circunstanciais ou de uma dada
tentativa de inserção em qualquer “escola” literária, mas antes com a necessidade
de articular um cismar poético com um sentido que se pretende coerente, bem
como com uma certa eficácia do dito junto do leitor.
A Travessia
de que nos fala o presente livro de Licínia Quitério não se restringe ao
caminhar através do mundo físico, embora também o seja; não é um termo, por
conseguinte, com um sentido unívoco: pluriforme e plurissignificativa esta Travessia vai-se desdobrando, ante os
olhos do leitor, em várias vertentes:
a)
é uma travessia
no próprio discurso poético, com as palavras e pelas palavras: “(…) as barcas/
pejadas de palavras,/ pediriam um vento de feição”;
b)
é uma travessia
no próprio modo como apreendemos o real: “O nosso olhar/ com o real não se
conforma./ Busca a ilusão, dizes,/ eu digo, o infinito”;
c)
é também uma
travessia simultaneamente existencial e ontológica, onde se joga a presença e o
destino do homem: “Donde vens, de que terra te perdeste,/ que procuras no meio
do nada/ que recado me trazes”:
d)
é uma travessia
cronológica e histórica, onde a duração e a temporalidade jogam uma cartada
fundamental: “No tempo de seres forte, não havia/ cavalo que não domasses/(…)
que te amedrontasse/(…) Fizeste filhos a perpetuarem/ a tua beleza, a tua
força.”; “Envelhecidos de abandono e ferrugem/ os caminhos já não levam nem
trazem”;
Constatamos, assim, que este poemário de Licínia
Quitério, pretende retirar o ser humano do ruído e do turbilhão que no hoje o
envolvem e, escalpelizando o seu ir sendo aqui, devolve-lo a uma lucidez que se
tem vindo a esbater, inserindo-o igualmente na sua condição essencial de ser de passagem: apesar de estatutos
polvilhados de arrogância e ambições desmedidas, o ser humano não é mais do que
um ser de passagem, um Caminhante numa mera Travessia:
“ De passagem vamos,/ neste trem de ferro,/ a engolir paisagens, casas.”
Os símbolos
predominantes nesta poesia encontram-se implicados naquilo que somos e na
tarefa a empreender, e neste território as palavras e a Poesia assumem um
estatuto privilegiado de mediação: “sem rumo as barcas, / pejadas de palavras,
/ pediriam um vento de feição”; “ Num verso longo é que se joga a vida./ Um
verso , longo e branco/ com sabor a caminhos/ a lonjuras.”; “A chuva cai/ e eu sou uma frase/ que
experimenta voar.”; “Caminhos que é preciso dizer”. Se o hoje é, como já disse,
marcado pelo ruído e por uma alienação turbilhonar, muitas vezes consentida
(“Andamos apressados na colheita dos dias,/ não vá o sol queimar a pele dos
frutos,/ (…) Temos medo de chegar tarde”), então, a Travessia tem de ser levada a cabo com o auxílio de muitos fatores
coadjuvantes: a memória, a circunspeção, o não nos deixarmos fixar no desalento
e na solidão e ousarmos sempre a persistência (“Esqueceste tantos nomes, tantos
rostos,/ mas aprendeste a vastidão da praia,/(…) É hora de empunhares o arco,/
seres a flecha. A pedra,/ Sozinho vais./ Ninguém pode ser a tua estrada”).
Vemos, pois, se ninguém pode fazer a minha Travessia
por mim, se ela se me apresenta,
por vezes, eivada de escolhos, não irá ser, no entanto, isso que me impedirá de a fazer, de, após a
queda, levantar-me e retomar o meu percurso, ou seja, neste livro de Licínia
Quitério o sentido da ousadia e da persistência superam sempre os momentos de
nostalgia e de desalento: “ Fica pequeno o coração/ mas a nossa casa continua
firme,/ a nossa pele ao abrigo das feras.”; “Anima-te,/ Se não sabes cantar,/
compõe sílaba a sílaba/ pequeninas palavras de rimar./(…) Amargura não serve,
podes apagar.”; “Ninguém me deu o livro das verdades,/mas eu vou. “ Esta visão
remete-nos invariavelmente para os matizes sócio-culturais e económicos que
ressumam, aqui e ali, na poesia de Licínia Quitério: 1º uma visão positiva do
estatuto da mulher: “Só na boca das mulheres/ a água se detém/à espera de ser
leite e ser criança”; “Tudo é possível nos dias da penumbra/ se uma mulher
vestida de vermelho/ pensa na infância e a desenha.”; 2º um questionamento da arbitrariedade
da norma: “ De noite caminham os proscritos da alegria/ e os recusados do
banquete.”; “São vultos contra a luz./ Têm dentro pessoas que procuram/ o outro
lado, sempre o outro lado/ do muro, do bosque, da praia,/ do nada que às vezes
dizem vida,”; 3º esta desmistificação da norma, não se limita tão-só ao trazer
a mulher para o centro, ela invade, em certos momentos, subtemas bem
específicos como os debates atuais em torno da questão do género e o
desmascarar de estereótipos relacionados com a questão da orientação sexual:
“Homens nascidos de mulheres./ Homens amantes de mulheres./ Homens amantes de
outros homens,/ Todos iguais na hora de chegar,/ na hora de partir.”, esta
igualdade no diferente acaba por se enquadrar nos debates atuais em torno das
teses da neurobiologia de Jacques Balthazart, aliás, como também a abordagem da
questão do género e do feminino entronca em obras de filósofos como Foucault,
Judith Butler, Thomas Laqueur (Cf. “Nous” de Tristan Garcia. Paris: Grasset:
2016, pp 134-145). Retomo as minhas palavras para a Licínia, aquando de um nosso
telefonema: “ É interessante como tu mantendo todo um léxico que é da tradição,
acabas por desembocar em questões extremamente atuais em torno das quais
circula muito da filosofia francesa contemporânea”. Penso que foi mais ou menos
isto que lhe disse!
Um outro
aspeto fundamental desta Travessia é
que ela se nos apresenta não como uma imagem da linearidade, mas antes como um
caminho disruptivo e, muitas vezes, de etapas pouco claras no momento e a poeta
serve-se do suplício de Tântalo para ilustrar esta ideia: “O relevo do dorso a
suportar o céu,/ a beber nuvens./ Convida o homem a subir./ Ele vai, cai,
rasga-se nas pedras,/ ergue-se, sempre./ Chegado ao cume, desdobra bandeiras./
Grita:/ Isto é meu, este sou eu./ A montanha deixa rolar uma pedra./ É o seu
modo de medir o tempo.”. Este excerto tem, todavia, dois níveis de leitura: se
um por lado assoma a crítica social, onde o eu se afirma através da posse
(“Isto é meu, este sou eu.”), por outro, aponta-se para algo mais radical, essa
Travessia onde o homem vai, cai,
rasga-se nas pedras e sempre se reergue. Este “reerguer após a queda” aparece
nesta poesia com duas particularidades: é um momento da ordem natural, mas é
também um Imperativo Ético, onde a Justiça e a Liberdade jogam uma cartada
fundamental, atente-se ao desdobrar
bandeiras, por tudo isto disse já que a ousadia e a esperança superam nesta
escrita os momentos de desalento, creio podermos dizer que estamos perante um
movimento ascendente rumo a uma dimensão específica da temporalidade: o futuro,
esta Travessia incorpora toda a
experiência vivida pela poeta e deixa-se dizer através das palavras, ou melhor,
através da Poesia: “Dá-me um novo alfabeto/ e eu te darei meu livro de
aventuras.”, mas neste livro de aventuras, neste falar da Travessia, o passado tem apenas uma função instrumental, jamais
preponderante. E aqui a poesia de Licínia Quitério aproxima-se da filosofia de
Miguel Real, e não apenas da sua filosofia, mas também da sua obra romanesca:
se lermos romances como As memórias
secretas da Rainha Dona Amélia ou Cadáveres
às costas encontraremos, algumas vezes, a expressão “Não fiques preso a
cadáveres”. Este primado de um futuro, ainda que desconhecido na sua essência, ainda
que indistinto no seu germe, é o que regenera a ação do homem, é o que dá
sentido à Travessia poética de
Licínia Quitério.
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Victor Oliveira Mateus
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quarta-feira, 6 de novembro de 2019
El prospecto
Usted no puede dar a luz.
Ahora. Ni nunca.
Hágase a la idea.
Usted no puede dar a luz. Acaso no leyó el prospecto?
Le recomiendo que no vuelva a escribir sobre el tema,
podría acabar en depresión.
Considere la opción de un animal doméstico.
Póngale nombre, hágale fotos, súbalas a las redes sociales,
verá cómo crecen los me gusta en las publicaciones,
cómo decenas de amigos le alivian su dolor.
No lo olvide: la ciencia es exacta, nunca engaña.
Pero anímese, usted es muy valiente, yo le admiro,
su elección sexual es un acto de resistencia.
Se llora por los muertos, no por los que no han nacido.
No tiene usted motivos para estar triste.
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Néstore, Ángelo. Actos Impuros. Madrid: Ediciones Hiperión, 2017, p 54.
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terça-feira, 5 de novembro de 2019
Comunhão
Todos os dias um torno de ferro
detém-me à entrada do ginásio.
O vidro insonorizado faz do local um escaparate.
Do lado de cá observo um homem loiro, barbeado,
com corte militar e camiseta verde sem mangas.
Ostenta uma vaidade sofisticada na franja
e as calças largas, deixam adivinhar-lhe os pêlos aloirados do púbis.
O rapaz dá um sorvo no seu batido de proteínas
e coloca sobre os ombros todo o peso que a masculinidade lhe exige.
Gostaria de saber em que está pensando
enquanto dobra os joelhos teatralmente.
Quantas vezes contará até dez.
Se lhe doem os braços, as costas.
Quem é a mulher que o espera em casa.
O rapaz loiro levanta o rosto, extenuado.
Excita-me o suor da sua barba,
a normalidade com que as gotas humedecem a toalha.
Imagino-me a atravessar a vidraça que nos separa.
Abro a boca debaixo da sua barba, tiro a língua para fora
tal como um menino ajoelhado frente a um altar.
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Néstore, Ángelo. Actos Impuros. Madrid: Ediciones Hiperión, 2017, p 18 (Tradução de Victor Oliveira Mateus).
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segunda-feira, 4 de novembro de 2019
Resposta de Eurídice, como quem perdoa
E se te quis seguir por que não te quis seguir?
Acabou-se-me o amor ao abraçar-te a morte.
A mesma sílaba aguda
trasladada de uma artéria qualquer do coração.
Não é possível aprendermos o outono sem morrer também;
Não pode uma mulher ver
o amor cair e ainda assim
viver.
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Duarte, Rita Taborda. As Orelhas de Kerenin. Lisboa: Abysmo, 2019, p 77.
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sábado, 2 de novembro de 2019
Gestos Extensos
Requer gestos extensos fatigados,
mas é uma invenção simples:
o miocárdio musculado recolhido e
freneticamente delirante a avançar a desistir
a porfiar a desandar de novo
até sobrar só o conchego desta cova aberta
e franqueada. E eu, imo fêmea,
vivendo-a como coisa íntima tão densa de raízes.
A solidão carece companhia, tu bem sabes,
uma ilha se extensa em demasia
nem ilha é só continente.
E tu cumpriste - tão bem - o teu papel.
Olha para trás, regada a sementeira:
o nódulo húmido da saudade principia
a germinar. Vê: começo a florir
a despontar como uma pedra.
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Duarte, Rita Taborda. As Orelhas de Karenin. Lisboa: Abysmo, 2019, p 27.
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