quarta-feira, 4 de dezembro de 2019


   Muitas vezes, quando vamos ao encontro do nosso rosto, sentimos com surpresa que passou um tempo. Aconteceram ambas as situações: tanto temos uma aguda consciência da passagem do tempo, como o tempo para nós é uma surpresa, pois não demos que tenha passado, ou tenha passado, por nós, assim. Numa vida espiritual acesa precisamos de meditar sobre o tempo (...).
   Falar do tempo é falar desta complexa aparição a nós próprios, referir a surpresa com que nos colhemos, nomear o espanto de, tantas vezes, sermos uns completos estranhos para nós próprios (...) pois cada um de nós é um fluxo, uma viagem, um projeto aberto, uma epifania inacabada..
(...) Os amigos trazem à nossa vida uma espécie de atestação. Os amigos sabem o que é para nós o tempo. Eles testemunham que somos (...) E fazem-no não com a superficialidade que, na maior parte das vezes, é a das convenções, mas com a forma comprometida de quem acompanha. O olhar do amigo é uma âncora. A ela nos seguramos em estações diferentes da vida para receber esse bem inestimável de que temos absoluta necessidade e que, verdadeiramente, só a amizade nos pode dar: a certeza de que somos acompanhados e reconhecidos. Sem isso a vida é uma baça surdina destinada ao esquecimento. (...) Já escrevia Aristóteles na Ética a Nicómaco: "O homem feliz tem necessidade de amigos." Nós adoecemos da ausência de amigos. Precisamos desse reconhecimento mútuo, pessoa a pessoa: um reconhecimento não fundado no confronto ou na competição, mas no afeto; não determinado meramente pelas leis da justiça ou pelos vínculos de sangue, mas assente na gratuidade. (,,,) Mesmo se for um único instante de contacto o que tivermos, tal basta para deixar transparecer uma amizade que existe.
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Mendonça, José Tolentino. Nenhum Caminho Será Longo. Para uma Teologia da Amizade. Prior Velho: Paulinas Editora, 2019, pp 111-118.
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