sábado, 7 de dezembro de 2019


   A perfeição coloca-nos perante a realidade como se de um facto consumado se tratasse (...) Existe só para ser admirada... à distância. A amizade construída sobre esse chão é devorada por uma tensão nascísica: escolhemos "amigos" pela sua importância, estatuto, aparência. Fazemos da amizade uma busca do aplauso. (...).
   Abraçar a imperfeição é aceitar a amizade como uma história em aberto, que conta ativamente connosco. Na imperfeição é sempre possível recomeçar. A imperfeição permite-nos compreender a singularidade, a diversidade, o real impacto da passagem do tempo em cada um. É verdade que as nossas fragilidades dão-nos também a ver as nossas singularidades. E é o impacto da fragilidade em nós que mostra a nossa realidade mais profunda, mostra a vida de Deus e os seus vestígios. Nesse sentido, a imperfeição humaniza-nos. Acolhê-la é uma condição necessária na amizade, e na maturação pessoal que nos cabe fazer. O mais urgente é aprender a semear, num trabalho de confiança, de desprendimento e simplicidade cada vez maiores. (...) Todos somos feridos, opacos, inacabados. Cada um de nós traz dentro de si uma quantidade irrazoável de sonhos sufocados, de pontas desacertadas, de palavras que não chegaram a ser ditas, de uma violência interior, mais difusa ou concentrada. Mesmo a nossa felicidade vem misturada com a memória de infelicidades que ainda nos ardem, mesmo que as calemos. Somos mais verdadeiros, porém, quando tomamos consciência disso e quando o partilhamos na confiança de uma amizade. Os mecanismos de autodefesa e de culpabilização só nos isolam mais.
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 Mendonça, José Tolentino. Nenhum Caminho Será Longo. Para uma Teologia da Amizade. Prior Velho: Paulinas Editora, 2019, pp 143-146.
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