segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Luís Rego escreve na Agenda Açoriana sobre o romance Maria Bettencourt, Diários de Uma Mulher Singular (Editorial Planeta, 2019) de Henrique Levy.
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DESASSOSSEGO LITERÁRIO

Tenho um fraquinho por livros que conseguimos ler de uma só vez, quase com uma só respiração, de um só trago. Falo muito na Pomba, mas O EstrangeiroO Velho e o Mara MetamorfoseA Alice no País das MaravilhasO Bracinho, entre muitos outros, enquadram-se numa categoria muito particular: o pequeno romance. E estes livros funcionam muito bem porque as emoções resultantes da leitura ficam mais compactas e acabam por ter mais impacto e profundidade. Tentei ler de uma só vez O Rapaz do Tambor de Lata, ou mesmo A Montanha Mágica e falhei redondamente, ou porque caí para o lado, ou porque a córnea se irritou comigo ou com o livro, não sei.

Foi um pouco neste espírito velocista que me agarrei ao livro Maria Bettencourt, Diários de uma mulher singular. Quando senti o livro pela primeira vez percebi de imediato que o conseguiria ler de uma só vez. Depois foi só esperar pelo momento certo.
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Dia 1 de janeiro de 2020
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Comecei e acabei hoje de ler um livro muito interessante do Henrique Levy sobre a intricada vida de uma mulher, inserida numa ideia de família, com algum peso social na ilha de São Miguel, Açores. Um dos pontos que mais me agarrou à leitura foi precisamente o facto de se passar nos Açores. Não posso deixar de me admirar com a coragem do Henrique, que não sendo de cá, transportou-me para uns Açores que acredito existirem. Em muitos pontos e linhas os Açores que conheço e reconheço. E isto vai desde a paisagem, à geografia concisa, mas também à cultura e à linguística. E eu gosto muito de ler livros que me conseguem fazer sentir Açores, e que este arquipélago não é um mero pano de fundo para uma história qualquer. Depois, também creio ser de uma coragem extrema um homem escrever na pele de uma mulher. Não é fácil, e é francamente assustador. Os homens são considerados péssimos escritores de personagens femininas. O Henrique, que disse gostar de águas agitadas, parece ter-se atirado de alma e coração a esta tarefa.
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29 de janeiro de 1970 - Página 84
Um toque de surrealismo. Maria Bettencourt decide vender, e vende, um dos T’s do seu nome ao agora TTavares.
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13 de abril de 1970 - Página 85
A Maria Betencourt tenta readquirir o segundo T. E consegue, embora tenha de pagar o dobro do valor que recebeu pela venda inicial.
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11 de maio de 1972 - Página 123
Há uma frase, creio que do Daniel de Sá, "sair da ilha é a pior forma de ficar nela”, que me parece falar sobre ausências. Eis que Firmino diz, às tantas, “Só vale a pena morar para sempre em alguém, se para isso não for necessário ausentarmo-nos de nós.” Tem um pouco de filosofia e poesia e funcionou muito bem naquele momento do livro.

17 de maio de 1972 - Página 129
“Nunca percebi a razão para a mamã me ter ensinado, desde pequena, a agradecer a Deus por mais um dia! Pois, afinal, para nós, é sempre menos um dia”. A religião a desembocar no distante existencialismo, uma espécie de quente e frio para a sobremesa.
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“Ó bezuga! Atiram, como piropo, os mestres, quando passo numa qualquer obra. Para, reles, acrescentarem, após constatarem a espessura das minha lentes. Tira os óculos e vamos brincar à cabra cega!”

Também gosto muito do sentido de humor e gostei muito deste momento, que hoje seria considerado sexista. O que vale é que estávamos em 1972.
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30 de junho de 1976 - Página 139
Após votarem, pela primeira vez na vida, e de uma forma quase arbitrária, Maria reflete sobre o facto. “Mas que raio de legalidade terá o resultado destas eleições se todos tiverem votado como eu e a Tázinha? Uma em fúria, outra com problemas de classe. A partir desse dia, comecei a desconfiar da democracia!”. Creio que a dúvida permanece até hoje, ficando também a certeza de que se a Maria tivesse um partido qualquer podia muito bem ser deputada. O jeito que não tinha dado? É que a profissão de bombista está cada vez mais difícil.
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7 de janeiro de 2020.
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Hoje vejo-me a escrever sobre o livro do Henrique por todas as razões acima mencionadas, e porque gosto muito do tom informal e descontraído. Gosto também do anacronismo, pois não existe a preocupação de emprestar uma sequência lógica e correcta entre as entradas no diário. E finalmente gosto da simplicidade dos diálogos e da forma em que entram na narrativa, sem pedir licença, faz favor, rompendo com as normas de etiqueta literária até aqui estabelecidas. Quem terá criado tais regras?

Fica evidente que é uma pergunta que não preocupa minimamente o Henrique. E se puder dar uma opinião, já que não fiz mais nada até aqui, creio que faz muito bem. 
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Luís Rego
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