quarta-feira, 8 de janeiro de 2020


Ninguém chegou, nem sequer o ressoar
de distantes passos desde este outro céu escrito,
não tenho notícias de mim próprio, e é estranho;
porém conservo sobre a mesa os afectos,
a oração da infância, imagens às quais não dei nome,
e o xadrez do desvelo.

Não tenho nem uma testemunha, doador ou guia,
alguém que veja dentro de mim e que dê andamento aos relógios.

O cheiro a sândalo impregna tudo.

Desfolhei abril até ao último cruel segundo
e tudo é detido.

A quietude dura o mesmo do que esta luz que me abate,
cada ruído é uma hora,
de dura casca o momento.

O olhar detém-se nos recantos.

Ando de um quarto para outro,
como num passeio sob as nuvens,
a tocar as ranhuras do tempo
com o frio pegajoso nas mãos.

Rememoro o musgo a cobrir a quietude,
o óxido que sigiloso faz crescer escombros,
o tédio escavando portas e paredes
e o júbilo de juntar pedras para o porvir.

Hoje não haverá descanso.
O repouso reduz-se a nada para sempre.

Preservo o hábito de passar o índice
sobre água clara deixando-se desejar.

De repente surpreende-me a presença de alheias lembranças
e de dias extraviados.

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 Rodríguez, Gerardo. Poemas de Almanaque para Entretener Marionetas. Fafe: Editora Labirinto, 2019, p 116-118 (Tradução de António Salvado).
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