sábado, 22 de fevereiro de 2020





Navegar na insónia, sem pressa nem destreza, à espera da manhã. Contrariar o inverno, com estas tenazes, a ver se o dia aguenta, uma hora a mais, se ele deixa a tua luz, como uma gola alta, proteger-nos do frio, e da lentidão das palavras, se ela escuta o orvalho, e o desânimo do jardim, se desconfiamos da alfazema, avulsas ametistas, à espera do fogo. Adicionar rumores aos pássaros, e adornar o ruído das pedras, com a fala dos roseirais. Suspender os provérbios e os salmos, se eles nos lembram da morte, que há em cada instante, se tudo passa e corre, enfraquecendo esta mesma ponte, que vamos atravessando, sustendo a sede, avançando no corrimão do dia, por onde se sobe mais do que se desce, mas onde o sol há-de firmar, a ver quem se atreve, espiando o que nunca foi inédito, cobrando pelo excesso do coração, quando respira fora de água, e nos resolve as contas, da eternidade.
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  Gonçalves, Daniel. Fluviário das horas póstumas. Ponta Delgada: Confraria do Silêncio, 2019, p 33.
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