quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020


Uma música como se não houvesse outra, banda sonora deste filme mudo, escorrendo na janela, apropriando-se da luz, como um canário que hesita, antes de escapar. A lembrança súbita da mortalidade, mandando rezar a chama de um círio, à padroeira dos loucos, possessos e sonâmbulos. O início de um poema, antes mesmo de ser estrofe. O meu rosto com a idade certa, só com os defeitos de nascença. Fazer planos sem anotar detalhes, ignorar os riscos sismológicos, se um dos joelhos cede, e o coração resvala.
(...) Mas, oh, no desterro do aeroporto, barricando as malas, e os passaportes por visar. E eu aos tropeções, olhando sobre o ombro, e este filme passando sem estreia, e eu pagando excesso de bagagem, por ter enchido este saco, com doze aparições tuas, todas vestidas de azul, logo a cor mais abundante do silêncio. E eu insistindo até ao último minuto, capaz de jurar, o teu rosto em cada face, que espreita o relógio, tão vigiado o tempo, que não pertence a este lugar. Mas, oh, como posso afinal, tão fraco nestes esteios de barro, desistir na asa das alturas, sem protesto nem amuo?
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 Gonçalves, Daniel. Fluviário das horas póstumas. Ponta Delgada: Confraria do Silêncio, 2019, pp 63-65.
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