A LITERATURA ACONTECE EM RECOMEÇO ININTERRUPTO: algumas considerações.
Ao debruçarmo-nos sobre o título que aqui se avança com um olhar de cariz racionalizante e alicerçado numa Lógica identitária imediatamente algumas questões se levantam, questões essas que apelam para a clarificação das conexões existentes no interior da própria frase. Vejamos: ao falar-se de recomeço, subentende-se que anteriormente existiu uma dada pausa, mais ou menos longa, todavia, a frase acrescenta-nos posteriormente a ideia de ininterrupção, o que, numa perspetiva logicista, contradita o anteriormente avançado, assim, se há recomeços no prossecução da História da Literatura é porque houve interrupções, e se houve interrupções não pode existir um processo continuo. Concluímos, portanto, que o título desta sessão é bem mais rico do que uma qualquer abordagem espartilhadora e geometrizante e que ele nos remete de imediato para um olhar alegórico, ou, até mesmo, poético, sobre o tema em causa, e que essa abertura desembocará, obviamente, num território de possíveis, um dos quais é, na minha leitura, a tese de que a Literatura se atualiza constantemente através de uma sucessão ininterrupta de recomeços e foi deste modo que eu li a abrangência e riqueza significante do tema proposto.
Ora,
se eu digo que a Literatura é uma sucessão ininterrupta de recomeços,
imediatamente uma panóplia de conceitos apelam para a elucidação do seu estatuto
neste processo, um dos quais é o conceito de rutura: poder-se-á dizer
que, aquando dos recomeços, existem ruturas, um pouco na senda da epistemologia
de Thomas Kuhn? Ou será que o que existe, na História da Literatura, é antes um
trilho continuísta e integrador, onde o já-sido ressuma, de um modo ou
de um outro, no diferente que emerge e o contem? Ao recusar a tese de
clivagens radicais entre paradigmas, aceitando antes um continuísmo integrador,
não como nos dizia o Frei Jorge de O Nome da Rosa, quando defendia que a
História é uma sublime recapitulação, nem tão-pouco no sentido de uma dada
circularidade heraclitiana ou de um percurso elipsoidal, não é em nenhum desses
três sentidos, mas antes que se está ante uma História onde o novo e diferente
jamais conseguirá ignorar os momentos anteriores e, até mesmo, podendo deles se
servir se tal lhe aprouver. Aliás, esta minha posição é suscetível de ser
encontrada em outros territórios da nossa cultura: poder-se-á, em pintura,
entender o Fauvismo sem conhecer algo do cânone Impressionista? Podemos, na
História da Música, ter um entendimento pleno do Dodecafonismo passando por
cima do Serialismo? E, até mesmo, na História da Filosofia, conseguir-se-á ter
um conhecimento rigoroso da Filosofia de Aristóteles sem conhecer a de Platão?
Como se consegue “entrar” em Jung ou Adler sem passar por um Freud que eles
reviram, recusaram, mas… também “usaram”, quando tal lhes dava jeito? Para
ilustrar esta posição da Literatura enquanto uma sucessão ininterrupta de
recomeços, apenas dois exemplos:
a)
Pegando no caso
de Judith Teixeira, poeta redescoberta há uns anos e já com edições esgotadas e
teses a serem elaboradas em Universidades estrangeiras, pegando neste exemplo,
vemos que J.T. trouxe para um contexto homoerótico poemas/ poetas de escritas
com orientações diferentes: o poema “A Estátua” (Cf. Poesia e Prosa, 2015,
p 47/ soneto “Estátua” de Camilo Pessanha (Cf. Clepsydra, 1995, p 85;
“Ilusão” de J.T. (Cf, Poesia e Prosa, 2015, pp 136-137)/ “Canção do nu”
de Afonso Duarte (Cf. Obra Poética, 2008, p 237);
b)
Num contexto
diferente e com outros intentos, veja-se como o verso de Verlaine “Ah! Quando
refleuriront les roses de Septembre!”, do seu poemário Sagesse irá
reaparecer, reformulado, no poema Huhediblu de Paul Celan; “Oh quand refleuriront, oh roses, vos septembres?” (optei pela tradução francesa, para
que melhor se ilustre a questão em jogo!). O mesmo procedimento utiliza Celan
num poema de Niemandsrose, que pede um verso emprestado a François
Villon: “Je suis Françoys, dont il me poise, / Né de Paris emprès Pontoise,”
(Cf. F.V., Oeuvres, Paris, Champios, 1967, p 95).
Mas
esta posição de entender a Literatura como uma sucessão ininterrupta de
recomeços não nos traz apenas a necessidade de refletir sobre a dicotomia rutura
de paradigmas/ continuismo integrador, outras variáveis exigiriam, à luz
desta visão, uma leitura com ela condizente: estatuto do Eu (do Autor, do
Leitor…); permanência, esbatimento e volatilidade da Obra, etc., contudo, e à
guisa de conclusão, apenas três sugestões que têm a ver com a celebérrima
questão da elaboração do cânone literário: a primeira seria a leitura de um
livro intitulado O Cânone Acidental do poeta brasileiro Marco Catalão
que, no essencial, não contradita a Obra-Monumento de Bloom; a segunda sugestão
seria elaborar-se um levantamento de autores, obras e interpretações que
circulavam durante a 2ª República e como todo esse material está sendo
recolocado ( ou apagado) na 3ª República, e dentro desta a cisão fazer mesmo a
distinção entre o período anterior ao 25 de novembro de 1975 e o que se lhe
seguiu, por fim, poder-se-á tomar consciência de todas as variáveis que
presidem à elaboração do dito cânone, muitas delas assumidamente
extraliterárias, e ver como elas se entrecruzam, ou, como elas, por vezes,
entre si se digladiam. Não creio que possa haver divergências entre esse agitado
mapear na Literatura e o que ocorre em outras esferas culturais e
artísticas (Cf. O Valor da Arte de José Carlos Pereira. Lisboa: Fundação
Francisco Manuel dos Santos, 2016, pp 21-70). Penso, por conseguinte, que
tarefas deste tipo seriam uma excelente propedêutica à prudência e à
dessensibilização da desmesura e da obsessão pela permanência, numa espécie e
num planeta que têm os dias, ou os anos-luz, contados, o que, ante a infinitude
é quase a mesma coisa.
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