terça-feira, 4 de agosto de 2020

A Revista Palavra Comum publica hoje, 2020/08/04, um meu artigo elaborado a partir da minha intervenção nas Raias Poéticas de 2020. 
.

A LITERATURA ACONTECE EM RECOMEÇO ININTERRUPTO: algumas considerações.

                                                               Victor Oliveira Mateus

 

Ao debruçarmo-nos sobre o título que aqui se avança com um olhar de cariz racionalizante e alicerçado numa Lógica identitária imediatamente algumas questões se levantam, questões essas que apelam para a clarificação das conexões existentes no interior da própria frase. Vejamos: ao falar-se de recomeço, subentende-se que anteriormente existiu uma dada pausa, mais ou menos longa, todavia, a frase acrescenta-nos posteriormente a ideia de ininterrupção, o que, numa perspetiva logicista, contradita o anteriormente avançado, assim, se há recomeços no prossecução da História da Literatura é porque houve interrupções, e se houve interrupções não pode existir um processo continuo. Concluímos, portanto, que o título desta sessão é bem mais rico do que uma qualquer abordagem espartilhadora e geometrizante e que ele nos remete de imediato para um olhar alegórico, ou, até mesmo, poético, sobre o tema em causa, e que essa abertura desembocará, obviamente, num território de possíveis, um dos quais é, na minha leitura, a tese de que a Literatura se atualiza constantemente através de uma sucessão ininterrupta de recomeços e foi deste modo que eu li a abrangência e riqueza significante do tema proposto.

Ora, se eu digo que a Literatura é uma sucessão ininterrupta de recomeços, imediatamente uma panóplia de conceitos apelam para a elucidação do seu estatuto neste processo, um dos quais é o conceito de rutura: poder-se-á dizer que, aquando dos recomeços, existem ruturas, um pouco na senda da epistemologia de Thomas Kuhn? Ou será que o que existe, na História da Literatura, é antes um trilho continuísta e integrador, onde o já-sido ressuma, de um modo ou de um outro, no diferente que emerge e o contem? Ao recusar a tese de clivagens radicais entre paradigmas, aceitando antes um continuísmo integrador, não como nos dizia o Frei Jorge de O Nome da Rosa, quando defendia que a História é uma sublime recapitulação, nem tão-pouco no sentido de uma dada circularidade heraclitiana ou de um percurso elipsoidal, não é em nenhum desses três sentidos, mas antes que se está ante uma História onde o novo e diferente jamais conseguirá ignorar os momentos anteriores e, até mesmo, podendo deles se servir se tal lhe aprouver. Aliás, esta minha posição é suscetível de ser encontrada em outros territórios da nossa cultura: poder-se-á, em pintura, entender o Fauvismo sem conhecer algo do cânone Impressionista? Podemos, na História da Música, ter um entendimento pleno do Dodecafonismo passando por cima do Serialismo? E, até mesmo, na História da Filosofia, conseguir-se-á ter um conhecimento rigoroso da Filosofia de Aristóteles sem conhecer a de Platão? Como se consegue “entrar” em Jung ou Adler sem passar por um Freud que eles reviram, recusaram, mas… também “usaram”, quando tal lhes dava jeito? Para ilustrar esta posição da Literatura enquanto uma sucessão ininterrupta de recomeços, apenas dois exemplos:

a)     Pegando no caso de Judith Teixeira, poeta redescoberta há uns anos e já com edições esgotadas e teses a serem elaboradas em Universidades estrangeiras, pegando neste exemplo, vemos que J.T. trouxe para um contexto homoerótico poemas/ poetas de escritas com orientações diferentes: o poema “A Estátua” (Cf. Poesia e Prosa, 2015, p 47/ soneto “Estátua” de Camilo Pessanha (Cf. Clepsydra, 1995, p 85; “Ilusão” de J.T. (Cf, Poesia e Prosa, 2015, pp 136-137)/ “Canção do nu” de Afonso Duarte (Cf. Obra Poética, 2008, p 237);

b)     Num contexto diferente e com outros intentos, veja-se como o verso de Verlaine “Ah! Quando refleuriront les roses de Septembre!”, do seu poemário Sagesse irá reaparecer, reformulado, no poema Huhediblu de Paul Celan; “Oh quand refleuriront, oh roses, vos septembres?” (optei pela tradução francesa, para que melhor se ilustre a questão em jogo!). O mesmo procedimento utiliza Celan num poema de Niemandsrose, que pede um verso emprestado a François Villon: “Je suis Françoys, dont il me poise, / Né de Paris emprès Pontoise,” (Cf. F.V., Oeuvres, Paris, Champios, 1967, p 95).

 

Mas esta posição de entender a Literatura como uma sucessão ininterrupta de recomeços não nos traz apenas a necessidade de refletir sobre a dicotomia rutura de paradigmas/ continuismo integrador, outras variáveis exigiriam, à luz desta visão, uma leitura com ela condizente: estatuto do Eu (do Autor, do Leitor…); permanência, esbatimento e volatilidade da Obra, etc., contudo, e à guisa de conclusão, apenas três sugestões que têm a ver com a celebérrima questão da elaboração do cânone literário: a primeira seria a leitura de um livro intitulado O Cânone Acidental do poeta brasileiro Marco Catalão que, no essencial, não contradita a Obra-Monumento de Bloom; a segunda sugestão seria elaborar-se um levantamento de autores, obras e interpretações que circulavam durante a 2ª República e como todo esse material está sendo recolocado ( ou apagado) na 3ª República, e dentro desta a cisão fazer mesmo a distinção entre o período anterior ao 25 de novembro de 1975 e o que se lhe seguiu, por fim, poder-se-á tomar consciência de todas as variáveis que presidem à elaboração do dito cânone, muitas delas assumidamente extraliterárias, e ver como elas se entrecruzam, ou, como elas, por vezes, entre si se digladiam. Não creio que possa haver divergências entre esse agitado mapear na Literatura e o que ocorre em outras esferas culturais e artísticas (Cf. O Valor da Arte de José Carlos Pereira. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2016, pp 21-70). Penso, por conseguinte, que tarefas deste tipo seriam uma excelente propedêutica à prudência e à dessensibilização da desmesura e da obsessão pela permanência, numa espécie e num planeta que têm os dias, ou os anos-luz, contados, o que, ante a infinitude é quase a mesma coisa.

.

.