domingo, 9 de agosto de 2020

 Vejo a vida como uma grande corrida de estafetas em que cada um de nós, antes de tombar, deve procurar levar mais longe a aposta de ser um homem. Não reconheço nenhum carácter final às nossas limitações biológicas, intelectuais e físicas. A minha esperança é quase ilimitada. De tal modo confio na vitória final que ouço muitas vezes o sangue da espécie a cantar, e o ruído do oceano parece-me vir das minhas próprias veias. Sinto então uma alegria, uma euforia de esperança e uma tal certeza de vitória que chego a sentir-me na madrugada do primeiro combate, muito embora a terra esteja coberta de espadas e de escudos destroçados. Provém isto, certamente, de uma espécie de estupidez ou de ingenuidade elementar, primária, mas irresistível, que devo ter herdado da minha mãe e de que tenho completa consciência. Ela põe-me fora de mim, incapaz de lhe resistir, e torna-me a vida muito difícil nos momentos em que seria melhor desesperar. E nunca desespero, tenho de fingir que sim... Uma centelha de confiança e de otimismo atávico permanece sempre no meu coração, e basta que as trevas se avolumem à minha volta para que ela crepite com intensidade. Nunca atribuo a injustiça aos homens, considero-a sempre vinda de longe e estes parecem-me simples instrumentos ao serviço dela, quer quando o uniforme francês serve de abrigo à baixeza e à estupidez, quer quando as mãos humanas, francesas, alemãs, russas, americanas se revelam de súbito extremamente sujas. Nos momentos mais duros do combate político ou militar, penso sempre em alguma coisa de comum com o adversário. O meu egocentrismo torna-me completamente inapto para as lutas fratricidas e não vejo que vitória poderia eu arrancar àqueles que, quanto ao essencial, partilham do meu destino. Não posso ser inteiramente um animal político porque constantemente me revejo nos meus inimigos, É uma autêntica enfermidade.
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  Gary, Romain. A Promessa. Porto: Livros do Brasil/ Porto Editora, 2019, pp 205-206 (Tradução de Augusto Abelaira).
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