segunda-feira, 10 de agosto de 2020

 Conferência que Tristan Garcia fez em 2015. Ver no Youtube. Esta tradução mantém todas as marcas da oralidade.
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                                    O real não precisa de nós
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Visamos aqui um percurso, uma pequena investigação sobre três figurações do real e do realismo no mundo contemporâneo. São movimentos que existem desde há dez anos: a) há um realismo metafísico que está mais ligado à ciência; b) um realismo político; c) um realismo ficcional.
No mundo contemporâneo realismo adquiriu um sentido original que está em vias de definir o próprio real, não por uma planura ao modo clássico, onde o real é aquilo que me aparece, o que é dado aos meus sentidos ou ao meu pensamento, não o real enquanto dado, nem o real no sentido de Lacan, o real negativo, um real como aquilo que não é possível. Está, então, surgindo no mundo contemporâneo uma visão original do real como aquilo que não precisa de nós , portanto, nesta investigação vamo-nos interessar pela relação entre o real, o mundo e nós. Mostrarei, progressivamente, como existe na relação com a ciência contemporânea, na política contemporânea, uma definição do real que visa apoderar-se de nós e que nos exclui, quer dizer, uma visão do real como aquilo que existe fora de nós, sem nós, como aquilo que não precisa de nós e que torna a nossa existência contingente, que nós estejamos ou não ali pouco importa, o real é-nos indiferente mas no sentido em que o real não tem qualquer relação e mostrarei como isso produz no espírito contemporâneo uma frustração que dá uma necessidade de ficção, e é a essa necessidade de ficção que me agarro, uma ficção que não será religiosa, mas é uma ficção literária que antes me interessa, portanto, proponho um percurso em três tempos/ etapas:
a primeira etapa é uma etapa metafísica, porque emergiu no ano 2000 um movimento a que se chamou o realismo especulativo , que pouco a pouco enervou a filosofia contemporânea a partir de uma conferência de 2007 dada por quatro filósofos: um francês e três anglo-saxões: Iain Hamilton Grant, Graham Harman, Quentin Meillassoux, Ray Brassier, eles intitularam o seu movimento de realismo especulativo e entenderam-se entre eles pelo negativo, sobre aquilo que eles queriam recusar, não havia, no fundo, um projeto comum, mas havia um inimigo comum: o que no pensamento moderno se chama de correlacionismo , por correlacionismo estes filósofos entenderam toda a forma de pensamento a partir de Kant, - e ele também em geral - que ligava o pensamento e o ser das coisas de tal maneira que era impossível aceder ao ser das coisas fazendo abstração do elo entre o pensamento e as coisas em si próprias, quer dizer, e para usar uma velha expressão de Hegel, que era impossível surpreender o objeto por trás, como se pudéssemos ver o que é a cadeira sem nós, e a grande ideia do realismo especulativo é que aquilo a que se chamou modernidade é essa vitória do correlacionismo, quer dizer, a vitória do corolário necessário entre o pensamento, ou a perceção também, e os objetos do real, de tal modo que na história da modernidade se demonstrou que toda a modernidade intelectual está construída sob a ideia fundamental de que o realismo era ingénuo, quer dizer, aquilo que pensava que os obetos do mundo existiam fora de nós, fora da nossa perceção, era uma dogmática ingénua que pertencia ao passado, e que o que era moderno é que eu não posso aceder à cadeira a não ser pela minha interação com essa cadeira, é preciso que me aperceba dela, que a pense de que a cadeira não existirá, em-si , fora da relação que posso levar a cabo com essa cadeira, o que interessou àquilo que chamaram de realismo especulativo foi mostrar as contradições do correlacionismo para projetar uma nova relação com a ciência que seja realista, quer dizer, o pensamento possível num real que seja de novo absoluto, absoluto no sentido inicial, desligado, um real que possa existir fora da relação que se tem com esse real, temos, por exemplo, Quentin Meillassoux, na filosofia contemporânea, no que diz respeito ao seu finitude , que ensaia um tipo desses de aproximação, há também um filósofo americano chamado Graham Harman que ensaia um novo tipo de realismo que ele designou como a ontologia orientada na direção do objeto, na sua filosofia de generalizar o descentramento fora da subjetividade humana, para romper com o correlacionismo , diz Harman, é preciso considerar que o homem, a subjetividade humana, tem, objetivamente, uma relação com os objetos, mas essa relação não é diferente da relação que os objetos têm entre si, quer dizer que quando eu me relaciono com esta mesa, para Harman, não há diferença entre essa relação e a relação da própria mesa com este copo de água, o que Harman quer dizer é que sob um  campo realista, para ele, ele defende que os objetos se apreendem entre si, ou seja, o copo percebe de alguma maneira a mesa, não a percebe ao modo de uma subjetividade viva, não tem um sistema nervoso central, mas como entra em relação com a mesa ele percebe-a de qualquer maneira e o objetivo da filosofia de Harman é de mostrar que a relação de uma subjetividade com um objeto é apenas um caso particular de uma relação entre dois objetos, por conseguinte, abre-se na filosofia contemporânea um novo campo, um novo realismo no qual a subjetividade humana é tratada como um objeto entre outros, isto conduz-nos a um certo número de proposições de descentramento relativamente ao antropocentrismo , e o realismo especulativo tenta descentrar radicalmente essa relação antropocêntrica onde há uma outra relação, que é a relação do homem com o mundo, isto traz uma série de consequências na cultura, por exemplo, de reformular nos EUA um certo número de versões  da ecologia, vemos aparecer, no final de 2000, conceções da ecologia descentradas do homem que rompem com a noção de meio ambiente, concebendo que a ecologia ambiental é ainda demasiado centrada na subjetividade humana, já que a ideia de meio ambiente será aquilo segundo a qual a natureza é... um englobar do sujeito humano e, portanto, quando vimos aparecer formas de ecologia profunda, nomeadamente a ecologia escura nos EUA, esta ecologia escura é aquela que pretende libertar-se, que pretendem, - digamos - do sentimental da ecologia, a ideia de que há ainda um elo privilegiado entre a sensação humana e a natureza, e é uma ecologia que tenta abordar de uma maneira que a natureza é radicalmente indiferente à nossa existência enquanto seres humanos, que concebem uma natureza que existe em si própria e é indiferente à nossa existência, portanto, aparece uma série de figuras neste processo, nomeadamente a vontade de pensar, de se representar o mundo como ele era antes da aparição de todo o tipo de sensibilidade seja ela qual for, é o tema do arquifóssil de Quentin Meillassoux ou é a ideia nesta ecologia escura de que nós podemos ter acesso, de que podemos nos representar o mundo, não só como ele era antes dos homens, mas como ele era antes de qualquer subjetividade animal, qualquer forma de perceção, mesmo de alguma forma de protoperceção vegetal do mundo. Nós temos, então, a vontade de nos representar um mundo sem nós, uma ecologia que visa representar o mundo, abstração feita do homem, ou mesmo abstração feita da vida em geral, da perceção. Nós temos um outro pendor deste pensamento que se realiza na cultura de massas que se faz representar o mundo na ausência de toda a forma de subjetividade depois do fim da humanidade, é o surgir - e vocês todos sentiram no aparecer da cultura,, nomeadamente da cultura popular a partir de 2000 - do imaginário pós-apocalítico, vocês lembram-se como isso desfilou nos ecrãs das produções americanas: 2012, O dia depois, etc., enfim, todas as formas de representação pelas quais sentíamos bem que começava a haver um desejo estético na (nossa) humanidade contemporânea de representar o nosso próprio fim, de representar o mundo desembaraçando-se de nós, a natureza desembaraçando-se do homem, desembaraçando-se da subjetividade humana, então, há este desejo estético e não só metafísico, de representar o mundo sem nós, o mundo libertado da subjetividade e da humanidade em geral, nesse imaginário, no conjunto desse pensamento, alguma metafísica contemporânea está fascinada pela ideia de nos tornar a nós próprios contingentes, ou seja, de aceder à contingência da nossa própria existência, nós podemos ser ou não ser... no imaginário contemporâneo começou a difundir-se, por esta metafísica, por esta ecologia, uma espécie de desejo do homem de representar a sua própria contingência, quer dizer, de ser um ser na natureza que pode ser ou não ser, portanto, pode contemplar o seu próprio fim, a sua própria inexistência, o que corresponde, aliás, na estética clássica, a um velho termo que é o termo de consciência do sublime, o Sublime em Kant relativamente ao Belo é a consciência que uma subjetividade pode ter dos seus próprios limites e ao ter consciência dos seus próprios limites tem também  a consciência da sua própria modificação possível, portanto, todo esse imaginário apocalítico não é uma consciência da Beleza mas do Sublime, vocês têm todas estas formas de ver nos filmes pós-apocalíticos americanos, vocês têm então a visão do último testemunho, quer dizer, a vaga vem e vai engolir todos os seres humanos e há uma última testemunha que observa, que assiste quando a natureza engole a subjetividade e desembaraça o mundo do ser humano, que o desembaraça de nós, do que nós somos. Temos, portanto, um imaginário contemporâneo, que vem da metafísica abstrata, mas que fez o seu caminho na cultura contemporânea, que é, se vocês quiserem, depois de uma longa modernidade que se encarregou de pensar a nossa necessidade, longa modernidade que podemos chamar construtivista na sua relação ao saber e à natureza... vocês têm uma modernidade que começa no séc. XVIII, modernidade que profundamente diz que aquilo a que podemos ter acesso é à própria condição do nosso saber e à condição necessária do nosso saber, quer dizer que nós humanos construímos o mundo falando, tendo consciência do mundo pela cultura, etc., e temos toda uma modernidade que é construtivista e que se esgotou até final do século XX, é uma modernidade que defende que é impossível pensar o mundo sem nós, porque pensar o mundo sem nós seria retirar a condição de dar sentido ao mundo e se destruímos a subjetividade não haverá mesmo mundo, não poderemos mesmo pensar o que seria o mundo sem nós, ao modo de Freud em que não se pode pensar a sua própria desaparição, a sua própria morte, e há uma modernidade em que não se pode pensar a sua própria morte, a sua desaparição, para que haja mundo, para que haja isso a que chamamos um mundo construído, uma natureza, é preciso o ser humano. Temos um esgotamento, em certos momentos, da metafísica em certos momentos do espírito contemporâneo, um certo esgotamento desse sentido da necessidade, na cultura, também na arte, isso foi marcado por uma espécie de lassitude da cultura relativamente a si própria depois da pós-modernidade, vocês têm uma espécie de fadiga do espírito humano, da cultura humana, que está fatigado provavelmente dessa ideia do reenviar para si própria que os objetos da cultura nos dirigem sempre à nossa humanidade, à nossa linguagem, à nossa consciência, à nossa perceção e provavelmente que essa fadiga deixou lugar ao desejo que é o do realismo especulativo , que o homem possa pensar, ao contrário, a possibilidade da sua ausência, quer dizer, fazer regressar o grande Fora, fazer regressar a possibilidade um um fora da subjetividade, de um fora da humanidade, uma natureza sem nós, pensar sem nós, pensar de um modo descentrado sem nós, vocês têm imensos sintomas desta transformação na cultura contemporânea, por exemplo na ecologia e também naquilo a que chamam a ética animal, quer dizer, a descoberta - no final dos anos 90 - da ideia de que o Direito está cercado, quer dizer, o Direito está cercado por uma espécie de círculo através do qual a humanidade se reservou o direito de ser a única pessoa jurídica e esse círculo foi quebrado pelo mesmo movimento através do qual o homem tenta descentrar a relação que ele tem com o mundo, e que essa relação não é mais do que um no meio de outros, e é o aparecimento do tema da atenção ao sofrimento animal e da ideia que, efetivamente, o homem deveria poder pensar que ele é uma criatura sensível no meio de outras e que, portanto, deve conceder o direito a outras criaturas que têm também uma relação com o mundo e que as outras criaturas não têm menos uma relação com o mundo, não têm menos sensibilidade e não sofrem menos e que, portanto, o Direito deve cessar de ser antropocêntrico, o homem deve ser capaz de se desprender voluntariamente de se fazer como a única pessoa jurídica; é um sintoma dessa nebulosa através da qual nós saímos do tema da pós-modernidade desde há mais de quinze anos. Vemos, assim, e para regressar ao nosso tema: o ponto em comum de todos estes movimentos - da ecologia, naquilo que Bruno Latour chama o l'acteur reseau e o pensador americano Levi Bryant chama a democracia dos objetos , a ideia de que é preciso, por exemplo, produzir tribunais nos quais os advogados não somente de animais mas também de objetos, de entidades em geral da natureza, um advogado poderia vir defender , por exemplo, os direitos do Golfo do México, contra uma dada companhia petrolífera que danificou a natureza, temos, então, na cultura contemporânea, uma grande onde de fundo cuja ideia central é a ideia do realismo especulativo , é essa ideia pela qual rompemos com a modernidade, que era correlacionista, e visa-se encarar uma humanidade capaz de se descentrar de si própria e de pensara sua própria ausência possível, o ponto em comum de todas estas visões metafísicas e éticas do espírito contemporâneo e de conceber que aquilo a que chamamos "o real", "a figura do real", torna-se uma figura muito particular, chamamos real àquilo que pode passar-se de nós, e por "nós" entendemos a nossa subjetividade de ser humano, etc., portanto, vemos nascer em metafísica essa ideia - em diálogo com o saber científico - que vamos nomear "o real" de uma maneira que ele não tenha necessidade de nós: o real é isso que é indiferente à nossa existência, é isso que existe quer nós existamos ou não, eis uma definição possível do real no espírito contemporâneo... sigamos este traço: primeiro índice da nossa procura: no espírito contemporâneo há metafisicamente, eticamente, uma noção vaga, em vias de se cristalizar, pela qual designamos o real por aquilo que se situa fora de nós, aquilo que não tem necessidade de nós, isso do qual nós não temos necessidade, quer nós estejamos lá ou não há o real, e o real é soberbamente indiferente ao que nós possamos fazer, essa é uma definição possível do real, vemos então que esta definição metafísica do real deixa o nós como uma espécie de questão em suspenso; se o real designa o mundo sem nós, o mundo fora de nós, o mundo indiferente a nós, o que é que poderemos fazer desse nós , portanto ressurge a questão política, o nós é o tema da questão política, e então surge aqui um segundo momento da nossa pequena procura: há um segundo sentido que o realismo está em vias de recuperar no espírito contemporâneo: é a ideia do realismo político que faz um longo percurso, desta vez não correlacionista, mas provavelmente um longo momento idealista na modernidade, no século XX, entretanto, no metafísico, real e realismo opõem-se no espírito contemporâneo ao correlacionismo. aquilo que pensa que no correlato entre o sujeito e o objeto é inultrapassável, em política o regresso do realismo opõe-se a uma outra figura que é a do idealismo ... continuemos a nossa procura: vocês têm a partir dos anos noventa um regresso de uma figura... que, realista politicamente - que provocará escândalo e vocês conhecem em 1993 a publicação do artigo de Samuel Huntington sobre o choque de civilizações, que vai dar lugar ao seu livro sobre o Choque de Civilizações , vocês vão ver no anos noventa a grande redescoberta de pensadores fascistas do realismo político como Carl Schmitt que é redescoberto pela diireita, mas também pela esquerda como Chantal Mouffe, e vocês têm como a cristalização, no fim dos anos noventa, dum novo sentido que é dado à ideia do realismo político , ora, este novo sentido na literatura política dos anos noventa a 2000 está ligado à contestação do sentido que o idealismo político tinha dado a nós , vede a implicação metafísica é mais na relação entre nós e o mundo... a questão é o nós, aquilo a que chamamos nós, a ideia da renovação do realismo político é a ideia que o idealista é aquele que pensa que o nós em geral é uma forma extensível à-vontade, o idealista universalista é aquele que pensa que há um movimento histórico pelo qual o nós é uma forma elástica que pode estender-se sem limites (...) a ideia que a relação entre o idealista e o realista contemporâneos em política são duas pessoas que fazem ensaios de elasticidade dos materiais, concebendo o nós como uma forma elástica: o idealista é aquele que pensa que não haverá rutura, ou seja, poder-se-á estender o nós sem limite - alguns exemplos: a primeira grande figura do idealismo do nós em política é a figura religiosa, vocês conhecem a promessa de São Paulo que diz que não há nem judeus nem gregos, não há escravos nem homens livres, não há homens nem mulheres, pois nós estamos todos unidos em Cristo, têm aqui um exemplo do nascimento do universalismo no ocidente e este universalismo está ligado à possibilidade de elasticidade do nós , temos o nós mais restrito: o nós homens, nós mulheres, nós nacional, nós grego, nós confessional, nós étnico... nós temos uma quantidade de nós : o nós familiar ... a humanidade estruturada por pequenos nós; o universalismo é a propagação da Ideia e a Ideia é a extensão de todos esses pequenos nós , é o momento em que a promessa de S. Paulo vai poder-se esticar como um elástico, todos os pequenos nós que estruturam a sociedade humana, e vamos poder chegar ao nós Homem em Geral e esse nós Homem está assegurado por Um no Senhor, mas vocês têm em outras religiões esta mesma promessa idealista de uma extensão sem limites que também encontramos no Corão, por exemplo: nós homens piedosos, nós mulheres piedosas e depois todas as tribos são nomeadas e vocês veem todos esses nós que se fundamentam em Alá, vocês também no Budismo, no Sutra de Diamante, essa declaração bem conhecida pela qual o Buda se dirige aos seus discípulos e diz-lhes: não somente nós os humanos, mas também os animais, mas também os vegetais, os seres que nasceram do ovo, os que nasceram de uma matriz, os seres que nasceram da humidade, etc., os seres que um dia serão todos libertados no nirvana, a promessa do Buda é ainda mais abrangente, porque não só permite assegurar a elasticidade até o Homem em Geral, mas vai para além do Ser Humano, o elástico não se romperá se nós dissermos "nós animais", "nós animais e todos os outros seres" seremos um dia libertos pela promessa religiosa. Este Idealismo prossegue e laiciza-se, talvez a grande laicização do Idealismo do nós seja o Marxismo, é em Marx - em Marx e em Engels já que eles estão muito próximos no Manifesto , a grande promessa comunista de 1848 - a ideia de que o nós humanos, devido à luta de classes está dividido num antagonismo entre homens e mulheres (já que Engels escreverá também sobre a Origem da Família ) , mas sobretudo os nós humanos estão divididos por antagonismos que são falsos, que são os antagonismos nacionais: a França, a Alemanha, nós franceses, nós alemães, a grande promessa marxista é que no dia em que a sociedade sem classes se concretize imediatamente todos os pequenos nós serão suprimidos, todos os antagonismos entre os pequenos nós, o nós confessional, o nós religioso, tudo isso será suprimido, o messianismo laico marxista é aquele que diz... e Marx representa um Idealismo sob este ponto de vista, pois se continuarmos com esta metáfora da elasticidade, o idealista é aquele que pensa efetivamente que o nós, a vitória de um só nós, a supressão da luta de classes irá suprimir todos os outros antagonismos, portanto, no dia em que a sociedade sem classes seja concretizada, os antagonismos de género, de classe, nacionais, cairão pela Graça, pela Magia da Dialética, portanto vocês têm no espírito contemporâneo uma promessa idealista que acabou por suceder à promessa marxista, e que é pouco conhecida em França, mas é muito conhecida nos Estados Unidos, é aquilo a que chamarei o Otimismo Evolucionário, são liberais americanos que a partir dos anos setenta, partindo de uma leitura de Darwin, vão conceber, ainda numa perspetiva idealista da extensão ilimitada do nós , vão conceber que é possível fazer uma História Natural da Humanidade pela qual a Humanidade está dividida em pequenos nós ( a tribo, o clã, a família...), o homem primitivo diz nós para designar a sua família, os seus próximos... vemos que há uma História que se torna otimista e pela qual toda a História, toda a evolução da espécie humana, degrau a degrau, é uma extensão desses nós, por exemplo: a criação do nós nacional na modernidade seria uma extensão do nós de tribo ou do nós de clã, a nação acaba por englobar várias tribos, vários clãs e depois há o surgimento do nós Humanista e dir-se-á nós os homens para agrupar num nós mais abrangente todas as nações e depois - e isso é interessante - este otimismo evolucionário junta-se a algo de que nós falámos no primeiro momento em Steven Kinker, que é um dos representantes desta via, ou em Singer e Cavalieri vemos que é a ideia que esta extensão não terminou, esta extensão irá abranger a conjunto dos outros animais, portanto, vocês têm um movimento natural evolucionário, um movimento de empatia humana, pela qual pouco a pouco a prendemos a dizer nós não apenas para comprometer a nossa humanidade, mas para comprometer a nossa sensibilidade e a de todos os outros seres sensíveis, relativamente a este ponto de vista temos um texto muito importante dos anos noventa, que é o texto de introdução ao projeto dos Grandes Macacos de Paola Cavalieri e Peter Singer que é uma História Natural deste nós, Paola Cavalieri diz nós temos primeiro o nós da tribo, o nós do clã, o nós da família, o nós da região, o nós étnico, o nós religioso, o nós nacional, o nós da Humanidade, e agora vamos englobar todos os grandes macacos, e depois todos os seres sensíveis, e depois todos os seres vivos, têm aqui um exemplo perfeito, na modernidade, duma política não realista, idealista, que prossegue essa tese centrada na ideia de que o nós é uma forma extensível à-vontade sem nunca romper. Voltando ao nosso tema que é a definição do real no mundo contemporâneo, vamos dizer que o realista, aquilo a que chamamos realista na mentalidade contemporânea, são os que vão dizer o contrário, eles dirão: aquilo que os idealistas esqueceram é certo dia o elástico estoira, não existe extensão sem fim da forma da subjetividade, do nós, portanto, os realistas farão sempre notar que à medida que o progressista estica a subjetividade, estica aquilo que ele entende por generosidade como nós, ele cria divisão interna, o que o realista vai dizer é que apesar da nossa boa vontade, quanto mais esticarmos o nós mais o fragilizamos, vocês têm uma bela observação de Castoriadis na sua leitura de Tucídedes, onde Castoriadis faz de Tucídedes o primeiro dos realistas, porque Castoriadis diz que Tucídedes é o primeiro que tem consciência da relação da função inversa entre a extensão de uma comunidade - a cidade grega, por exemplo - e a potência de solidariedade da comunidade que a criou, Castoriadis diz que toda a lógica da leitura de Tucídedes é de dizer, que de cada vez que há uma aliança e um nós mais largo se cria, que mais cidades se agrupam, Tucídedes é então realista porque tem consciência de que quanto mais o nós se alarga mais ele é frágil, é como uma pele que vocês esticam, quanto mais a esticarem maior a possibilidade de romper, quer dizer, quando vocês realizam uma subjetividade coletiva que é mais abrangente, que engloba mais seres... o realista é aquele que diz: há cada vez menos coisas que nos vão ligar se nós dissermos nós animais inumanos nós teremos manos coisas em comum do que se se disser nós seres humanos ou se dissermos nós deste clã, nós desta tribo. O realista, portanto, que é uma figura que renasce em política nos anos noventa, é aquele que diz que no nós, na subjetividade coletiva, há uma relação inversa entre a extensão e a intensidade, quanto mais o estendermos menos ele é forte, o universalista é aquele que não compreendeu que se estendermos o nós nós enfraquecemo-lo, assim, o realista é aquele que diz, que não há um nós tão forte como os pequenos nós, a pequena unidade, o realista diz: vede, é normal... houve um longo momento que é o humanismo, em que desenvolvemos, em que estendemos o nosso nós e o resultado é a comunitarização, quer dizer que o nosso nós rompeu-se e houve nós mais intensos que atraíram mais as pessoas porque são mais fortes, porque são mais restritos, quanto mais um nós é restrito sobre uma identidade pequena, mais ele dá a impressão duma intensidade, duma força, o problemas do universalista é que ele produz um nós muito abrangente, mas cada vez menos forte, portanto, cada vez menos desejável para os homens, por conseguinte, vai haver realismo no espírito contemporâneo que defende esta lógica, esta relação inversa, esta ideia vocês podem encontrá-la, a grande ideia do realismo contemporâneo é que, relativamente ao idealista, ao universalista, a via do realista é aquela que diz: o que é isso de real em política? É o que em nós resiste à nossa vontade, resiste à nossa ideia, há, pois, qualquer coisa na própria estrutura do nós que não depende de nós, e essa coisa que não depende de nós, é uma regra, uma espécie de lei, que faz que quanto mais nos estendemos mais somos fracos, e que quanto mais nos retraímos mais há aí uma força, uma forma de intensidade, e não há meio de resolver este problema, quer dizer que, contrariamente à humanidade universalista que acreditava poder construir um nós demasiado extenso e muito forte, o nós ser humano, por exemplo, a promessa do nós humanista que era simultaneamente um nós muito abrangente de muito intenso, que é um nós que emerge a partir das raças, a partir de Montaigne, que é um nós companheiros humanos de La Boétie, por exemplo, esse nós humanista, de facto, o realista vai dizer, por exemplo, vocês podem encontrar isto em textos, nos textos americanos, por exemplo, dos realistas americanos de 2000, por exemplo, o humanismo é, de certa maneira, o responsável pelo racialismo, ou seja, é por dizermos nós homens que aparecem logo as diferenças entre os homens, e que essas diferenças entre os homens irão ser teorizadas pelos racialistas dos séculos XVIII e XIX: Gobineau, Morton (Samuel George Morton), etc, todos aqueles que foram medir os crânios para ver as diferenças: uma raça asiática, uma raça mongol, uma raça negra, etc e, portanto, há esta ideia do realista, que é de que o idealista é ingénuo porque ele crê que não hã preço a pagar pela extensão do nós, nós enfraquecemo-lo, nós mostramos a possibilidade de divisão interna, de divisão racial, de divisão comunitária e que, portanto, a extensão universal do nós humano produziu, de qualquer maneira, a dispersão e a comunitarização que conhecemos hoje, o regresso a nós mais pequenos, os nós religiosos, os nós comunitários, os nós identitários, que parecem mais fortes, mas são mais restritos. Então, vemos que a segunda figura do real no espírito contemporâneo (...) não mais temos a figura metafísica, se quereis, que é a que começa a fazer o seu caminho no espírito contemporâneo, que é a de entender o real como aquilo que não tem necessidade de nós, o real é aquilo que pode existir sem nós, é o real da ciência, portanto, do realismo especulativo, é também o real do imaginário pós-apocalítico, conceção mórbida do homem fazendo abstração da sua própria existência, vocês têm esta primeira conceção do real que não tem necessidade de nós, depois têm esta segunda conceção política, que é de que há qualquer coisa em nós que não precisa de nós, há qualquer coisa em nós que não depende de nós, que não depende da nossa vontade, que é apesar de nós, e é isto que defende o realista em política, aquele que diz: seja o que for que nós façamos, nós podemos ser de boa vontade, nós podemos ser humanistas, nós podemos ser universalistas, mas haverá sempre qualquer coisa que não depende de nós, há qualquer coisa na própria estrutura do nós que é de tal modo que nós pretendemos entende-la, mas ao entende-la acabamos por a romper. (...) só para vos mostrar que no espírito contemporâneo está em vias de emergir a nossa condição, não somos mais os modernos, não somos mais os pós-modernos, nós somos sob condição duma espécie de definição vaga que está em vias de se nos impor,  e que é que, simultaneamente metafísica e politicamente, nós estamos em vias de chamar , cada vez mais, real àquilo que não tem necessidade de nós, aquilo que, no fundo, é radicalmente indiferente à nossa vontade, à nossa intervenção, à nossa boa vontade, do que podemos fazer ou ser, e eis o terceiro momento da nossa investigação, parece-me que há uma espécie de sonho, que é quanto mais no espírito geral do tempo se impõe a ideia de real, mais aumenta o desejo de ficção, porquê?, porque nós, iremos chamar de ficção não só o que se opõe ao real - a ficção não é aquilo que se opõe ao real!- , a ficção é a produção de um real que tem necessidade de nós, o que é então uma ficção?, é a constituição de uma realidade que nós sabemos que tem necessidade de nós, é ficção aquilo que não pode existir enquanto realidade sem nós, a ficção é um real, mas é um real que tem necessidade de nós, à medida que  vamos tendo uma consciência vaga de que o real não tem necessidade de nós, cresce ao mesmo tempo a necessidade de produzir a ficção, isto é, de produzir um real que só nos tem a nós, e isto porque o problema dos grandes realismos da época (o especulativo e o político) é que nos tornaram não necessários, ora, se há algo que um sujeito histórico não consegue suportar é a consciência da sua não necessidade, pois que se é não necessário não será nada, ele pode existir.... pode ser ou não ser que isso não muda nada, portanto, a ficção coloca a intervenção ao contrário num real que tem fortemente necessidade de nós, a ideia de que há realidades que não podem existir se nós não existirmos, portanto, nós somos necessários, assim, existem dois tipos de ficção: há uma ficção que poderemos chamar de religiosa e há uma ficção que podemos dizer que ronda a ficção literária, a ficção artística, evidentemente a história da ficção na espécie humana liga-se às duas, nos primórdios, no Mito há uma mistura de ficção religiosa e de ficção artística, mas vamos distingui-las: diremos que a ficção religiosa, de acordo com aquilo que pensam os discípulos de Hegel, Feuerbach ou em (Bruno) Bauer, é a ideia de que a religião, o religioso em geral, é a criação de uma ficção produzida pelo espírito humano, mas que não se apresenta como é evidente como uma ficção, que se apresenta como qualquer coisa que não tem necessidade do homem, ou seja, é uma ficção que leva tão longe a ficção que se ficciona a si própria como não sendo ficção, o religioso é uma ficção que é de tal modo fictícia que anula aos olhos daqueles que a produzem a sua dimensão ficcional, mas é uma ficção, é uma produção do espírito humano, então, na ficção artística, nomeadamente na literatura, há uma ficção que não é até ao fim da ficção, porque se apresenta de um modo realista como ficção, a ficção literária é tal que num dado momento para a ficção apresentando-se como sendo efetivamente uma ficção, portanto, como o produto do espírito humano e não como a realização de uma realidade transcendental, o que me interessa aqui é que se se aumenta a necessidade de ficção aumenta a religioso, mas se aumenta o religioso é preciso que aumente um outro tipo de ficção que é a ficção que não pretende ser ficção, que é a ficção religiosa, mas que é a ficção literária que se mostra enquanto ficção, assim, neste momento desta nossa investigação parece-me, vendo pouco a pouco a literatura, vocês têm, talvez, um longo caminho que alcança a ideia que faço do que é a literatura hoje, vocês sabem que, num modo recente, distingue-se, de maneira quase industrial, de indústria do livro, dois tipos de literatura, na relação que têm com o real, há uma literatura do imaginário, a fantasia, a ficção científica, e há uma literatura do real, que será uma literatura neutra, uma literatura branca, uma literatura realista, não sabemos muito bem como designá-la, portanto, a partir do que dissemos até agora, vemos que é evidente que não há uma literatura da realidade e uma literatura da ficção, as duas são ficção, mas as duas produzem realidade, as duas são de qualquer modo, realistas, dou um exemplo: um dos grandes livros realistas politicamente, que diz melhor o que é o realismo político atual é um livro de fantasia que foi adaptado à televisão e que é o Le Trône de fer ( de George R. R. Martin: 1º livro intitula-se: Le trône de fer/ A guerra dos tronos , a série integral dos livros intitula-se: A song of ice and fire) é uma lição de realismo político, é um mundo no qual só existem relações de força e nada mais, é um mundo completamente ilustrado pelas teses de Maquiavel e de Carl Schmitt, só existem apenas conflitos, só existem relações de forças, nada mais, de tal modo que aqui, na Song of ice existem crenças religiosas, mas estas são sempre vistas na perspetiva do político, de que maneira uma crença religiosa é utilizada por razões políticas, o religioso só tem existência - para o realismo político - enquanto ele serve um nós contra outro nós , e vocês vêm bem que A song é uma ilustração destas ideias, quanto àquilo que digo relativamente ao realismo político e à fluência do nós, o que a Guerra dos Tronos mostra é um parcelamento do nós, vocês têm os sete tronos que são pretendentes à unificação possível do território, mas abemos bem que assim que ele se unifica, ele enfraquece-se, aquele que se tornar o rei do conjunto... isto é uma ilustração do do espírito realista que pensa que a política é unicamente esse jogo de funções: estende-se, logo, enfraquece-se, e restringe-se, reforça-se, portanto, temos a literatura do imaginário, que é, no plano político, profundamente realista, vocês têm também uma literatura do real que é profundamente idealista, portanto, literatura do imaginário e literatura do real não se definem por uma espécie de partilha: tu ficas com o real e tu ficas com a ficção, mas, na minha perspetiva o que permite distingui-las é a diferença de diagnóstico sobre a relação de forças na época entre real e ficção, no fundo creio que aquele que faz ficção do real, aquele que faz romance do real, que faz literatura do real é aquele que pensa que nós somos sob condições de não ficção, de tal modo que o real se encontra envolvido por crenças, ficções e que, paradoxalmente, o real tem de novo necessidade de nós, dito de outra maneira, aquele que quer fazer literatura do real é aquele que pensa que de acordo, talvez, no absoluto o real não tenha necessidade de nós, mas o real está de tal modo envolvido por ideologias, por representações, por películas de ficção, o real tem, pelo menos necessidade que nós o estiquemos, portanto, urge fazer um trabalho de investigação para reencontrar o real creio, então, o que faz literatura do real hoje é aquele que pensa profundamente que a relação de forças é tal que nós somos sob condições, nós somos dominados pelas nossas ficções, portanto, o papel do escritor é de produzir uma ficção que seja uma ficção real, que seja capaz de re-dar (voltar a dar!) - e creio que há aqui algo de idealista, no fundo, e isso paradoxalmente! - é aquele que pensa que o real pode ainda ter necessidade de nós, ele tem necessidade de nós porque tudo mente, como há ideologias, há equívocos... é preciso fazer ver o real, portanto, é preciso que eu salve qualquer coisa do real, é preciso até - talvez - que eu reconstrua, que eu dê a ver, senão nós não seremos mais capazes de ver o real, então, creio que aqueles que estão do lado da literatura do imaginário, no fundo, são aqueles que, na relação de forças, pensam que sempre nós estamos sob condições de dominação do real: o real já está ali, para que serve o representá-lo?, os que fazem literatura do imaginário são aqueles que, creio, vão pensar - faço uma caricatura, pois existem imensas posições para ensaiar fazer uma pequena cartografia - eu próprio, quando me dirijo para a literatura do imaginário sinto que o meu impulso é o seguinte: por que razão restituir o real se ele já está aí? Já que o real, no sentido contemporâneo, é aquilo que não tem necessidade de nós, porque razão obrigar-me a reproduzir o real, é uma velha ideia, é uma ideia, por exemplo, que está nos surrealistas, em Breton, que vão condenar o romance... a ideia de que no fundo o romance realista, Dostoievsky... mas para que serve isso? O real já está aí! Porquê estafar-se... ou as críticas de Barbey d'Aurevilly relativamente a Zola, por exemplo, ou ainda a critica de Flaubert feita a Balzac, do romance sociológico, de Balzac reunir imensa documentação sobre o real , sobre a sociedade, e tudo isso - diz Flaubert - acabou em Sociologia, já que na realidade o real já está ali, porque reproduzi-lo?; do lado do imaginário há, portanto, no fundo, que nós estamos sob condições numa relação de forças do real, é o real que domina, e se é o real que domina o papel da literatura é produzir ficção, portanto, creio, que o fosso que separa, nas nossas representações, , uma suposta literatura do imaginário e uma suposta literatura do real, é uma diferença de diagnóstico numa relação de forças, quase política, entre o real, a realidade, e a ficção, ora, a política no fundo é sempre afrontarmo-nos com um diagnóstico sobre quem domina, a política começa quando nos perguntamos quem é dominante e, evidentemente, todo o conteúdo político vem do facto que não entendemos a dominação da mesma maneira, o crente é aquele que vai crer na vitória geral da laicidade, o laico vai ver a vitória geral do crente, etc., e, portanto, parece-me que a relação entre literatura do imaginário e literatura do real está associada a uma diferença de diagnóstico: o que é que domina? O real ou as nossas ficções? Segundo ponto: a partir disto, creio, que a vitória de um ou de outro é a sua derrota, quer dizer, quer dizer que o entendimento último do ideal da literatura do real ou o entendimento último da literatura do imaginário.... a vitória de um será a sua derrota. Porquê? Porque a literatura do real, de facto, se ela triunfasse, se ela conseguisse realmente restituir o real, o seu triunfo seria a sua perda, porque imediatamente ela se anularia, ela tornar-se-ia não necessária, já que vimos que a figura vigente no mundo contemporâneo é a do real que não tem necessidade de nós, um real não necessário, portanto, a sua revelação do fundo do real, do real social ou do real natural, do real físico, e cairíamos num real que não precisa de nós, isso tornar-nos-ia não necessários, por isso penso que o triunfo de uma literatura do real seria também a sua derrota, mas inversamente o triunfo de uma literatura do imaginário seria também a sua perda, porque aquilo que ameaça a literatura do imaginário é, no fundo, a negação do religiosos, assim, é no momento realizando a ficção, realizando a constituição de um universo de ficção à parte do real, ela acabaria por tomar essa ficção pelo real, foi o que aconteceu, na cultura popular, com a realização quase religiosa de um certo universo coerente, segundo a literatura do imaginário, é que acontece com as personagens de Tolkien que à força de consultar o Silmarion acabaram por fazer do Silmarion uma espécie de Bíblia ou de História paralela completamente delirante, que de tal modo elas constituíram um real à parte do real, com as suas línguas, as suas enciclopédias, as suas personagens, e aí onde surge a vacuidade da literatura do imaginário é o momento em que ela realiza um mundo fictício que se apresenta tão coerente como o real, ela anula-se, porque produz uma atitude religiosa, porque aquele que a cria como pura ficção acaba por não a ver como uma ficção e adota a posição religiosa que é a daquele que produz uma ficção e acaba por não a ver como ficção, que é posição profundamente dessas personagens na cultura popular, acontece a mesma coisa com A Guerra dos Tronos , com o L'Univers étendu , produz a mesma coisa também com A song of ice and fire , há esta pulsão no relato do imaginário que é na altura em que ele triunfa, no momento em que concretiza um universo coerente, ele torna-se totalmente vão, torna-se vão em primeiro porque na literatura, na literatura do real esta acaba por re-dobrar o real, mas depois de tudo: para quê um segundo real? Uma segunda História coerente da Humanidade? Mas temos necessidade disso?, portanto, no momento em que ele se concluiu é o momento em que se torna vão, ele produz um outro universo, um universo paralelo, é o que acontece com as personagens de Marvel (Marvel's Avengers) : há múltiplos universos paralelos possíveis, portanto, a ideia que defendo é: se o triunfo ou o triunfo da literatura do imaginário é da ordem dos factos, então, é preciso pensar o universo: uma e outra não triunfam se não fracassarem, quer dizer, que não há literatura do real interessante se ela não fracassar ao restituir o real, não há literatura do imaginário se ela não fracassar, se ela não se realizar em religião, na constituição de um mundo paralelo, assim, chegamos pouco a pouco, àquilo que é para mim, a nível mental, o meu ideal estético contemporâneo, que é a ideia de que não é preciso afrontar nem um nem outro, mas é preciso fazer jogar sempre um contra o outro, no fundo a literatura do imaginário existe para fazer jogar uma pulsão contra a pulsão de real, e a literatura do real existe para fazer jogar também uma outra pulsão contra a pulsão do imaginário, contra a pulsão da ficção livre, em-si-própria, que corre o risco de acabar em religiosidade, portanto, o campo da ficção, para mim, segundo o meu ideal estético, é o único campo onde, na relação com o real que está em vias de se definir no mundo contemporâneo, nós poder-nos-emos reunificar, poder-nos-emos reunificar porque se nós conseguirmos fazer jogar o imaginário contra o real e o real contra o imaginário, se nós conseguirmos limitar um e outro a produzir uma relação estética de forças entre um e outro nas obras, então, talvez nós tenhamos uma chance de escapar àquilo que nos ameaça no mundo contemporâneo, aquilo que nos ameaça é uma tenaz, aquilo que nos ameaça é uma prisão como uma tenaz.... vocês já viram, quando falei do realismo especulativo, entre uma conceção metafísica do real que é: o real não precisa de nós, e o outro lado da tenaz, o religioso, que irá dizer: sim, efetivamente, como o real não precisa de nós, desinteressa-te do real, se o real não se interessa por ti, desinteressa-te tu do real; voltando ao braço (da tenaz) religioso que nos diz efetivamente: a ficção precisa de ti, mas é a ficção que se apaga enquanto ficção, porque, evidentemente, o espírito religioso é aquele que começa por ficcionar mas acaba sempre esquecendo que está ficcionando, tendes aí a primeira parte da tenaz, depois vocês têm o segundo ramo dessa tenaz, que é o ramo político, entre o idealismo que promete a extensão do nós e que promete, portanto, que há no nós alguma coisa que depende apenas de nós, que é a possibilidade de continuar a ser universalista, a estender, por empatia, a nossa subjetividade a tudo, talvez até aos animais, aos outros seres sensíveis, à totalidade do cosmos, e no outro ramo da tenaz, há o realista, que nos diz: não o real é o que vai interpelar-te quando tu te crês estender sem limites a tua subjetividade política, o teu nós, não!, haverá sempre um refúgio do real que vai ser uma fragmentação, a comunitarização, etc., parece-me que se queremos evitar ser apanhados pela tenaz, entre o real que não tem necessidade de nós e a ficção que nos interpela, que tem necessidade de nós, mas que, no fim de contas, pode sempre terminar em religiosidade, o único lugar de reconciliação disto é a ficção que se apresenta como ficção e, em última instância, pode ser, efetivamente, pode ser a literatura, é talvez o único campo unificado onde deverá ser possível tratar igualmente - e formulo aqui o que é o meu ideal estético para o mundo contemporâneo! -, de ser capaz de construir um plano de igual dignidade para o real e para as nossas ficções, quer dizer, de ser capaz de tratar com igualdade os produtos do nosso espírito e a realidade, portanto, a literatura torna-se nesse lugar, e torna-se sem cessar, mergulhar no real as nossas crenças, as nossas ficções, as figuras daquele que crê (crenças religiosas, crenças políticas...) e ser capaz, ao mesmo tempo, de as surpreender pelo reverso, pelo avesso, e de ser capaz mostrando o crente no real, mostrando, mergulhando - se preferirem - uma crença na realidade, e, inversamente, a literatura deverá ser capaz, como o faz a literatura do imaginário, de re-mergulhar o real no meio de todos os possíveis, no meio de todas as ficções, de ser capaz de mostrar que o real não é mais do que uma ficção entre outras, de abrir os possíveis e isso seria a ficção que se dá enquanto ficção, deveria ser uma relação de forças não reguladas, não ultrapassadas, entre um e outro, mergulhar o real na ficção, mergulhar as nossas ficções no real e, portanto, anular a diferença entre literatura do imaginário e literatura do real, mas conceber uma estética contemporânea que seria uma relação de forças permanente, que seria o único lugar onde nos poderíamos reunificar e que nós poderíamos ver, lendo um livro, vendo um filme, nós poderíamos ver numa ficção um plano igual onde nós não seriamos naturalmente realistas, quer dizer, que não trataríamos de maneira condescendente as nossas ficções, as nossas crenças, crenças religiosas, crenças políticas, umas e outras como loucuras irrealistas, nada de condescendências para com as ficções, porquê?, porque nós temos consciência de que o real não precisa de nós, e como o real não precisa de nós, o real não pode ser necessário, nós temos fatalmente necessidade de ficção a partir do momento em que nós pensamos que o real nos torna contingentes, mas inversamente a ficção deve ser o lugar também onde deve ser possível considerar de modo igual o real e as ficções, um plano de igualdade sobre o qual pudéssemos tratar igualmente, e nem mais nem menos, a realidade, quer dizer, a realidade sensível, os nossos corpos, a realidade material, a realidade física, a realidade histórica, a realidade social, todas as determinações da realidade e, ao mesmo tempo, tratar, nem mais nem menos, as nossas crenças, as nossas loucuras, as ideias religiosas, as ideias políticas, os outros mundos, tudo o que é produzido enquanto ficção, para escapar precisamente ao constrangimento do real contemporâneo que nos diz que não precisa de nós, vocês vêm, e quero terminar aqui, por este longo caminho fiz a genealogia do que é o meu ideal estético, enquanto romancista, por exemplo, sou confrontado com a ideia de que não sendo totalmente crente, de nenhuma maneira, estou mergulhado num mundo contemporâneo, onde a crença (uma ficção religiosa, política...) ressurge, o meu problema, fundamentalmente no romance, é de chegar a encontrar um lugar onde possa ser justo, quer dizer, não dissolver a realidade na ficção e vir a perder o sentido do real, conservar o sentido de que em toda a ficção, por trás de toda a ficção, há um homem concreto que está na realidade, que está na realidade física, que está na realidade social, que está na realidade histórica, portanto, conservar a possibilidade de mostrar, de apreender do avesso uma ficção ou uma crença para mostrar aquilo que ela é no real, o que é aquele que crê politicamente, que crê religiosamente, o que ele é concretamente, o que é que ele é realmente, não perder o sentido disso, mas ao mesmo tempo, não ter o real como uma determinação última, ser capaz de o colocar ao lado das ficções e, portanto, ser capaz de tratar o real como uma possibilidade no meio de outras, é por isso que, cada vez mais, nos meus romances me interessa utilizar ar fórmulas que vêm da literatura do imaginário - é que isto se passou historicamente? Ou passou-se de outro modo? - é uma velha ideia da literatura do imaginário para tratar a realidade como uma possibilidade por entre outras, como vocês veem, ao mesmo tempo tratar o real como uma possibilidade no meio de outras e, ao mesmo tempo, ser capaz de recolocar os possíveis, de recolocar as ficções, no interior do real e, por este longo caminho, o meu ideal estético romanesco, chega a esta ideia: o romance é a única forma, que, para um tipo de espírito como o meu, pode servir de equivalente do religiosos, quer dizer, o romance é o único meio que vejo de me agarrar à crença de maneira justa e igual, de construir um plano, um plano de igualdade sobre o qual poderá ser possível, simultaneamente, de integrar essa imagem do real que se impõe no espírito contemporâneo, que é o real não precisa de nós, e de integrar as ficções que são o meio através do qual o espírito contemporâneo, cada vez mais, vai resistir a essa definição do real ensaiando tornar-se necessário, ensaiando reencontrar a sua necessidade: o que é que depende dele? O que é que ele pode produzir que dependa apenas dele? E toda esta construção para chegar à ideia que eu faço do romance, à ideia que eu faço da literatura sob estas condições contemporâneas, é esta!, simplesmente para vos mostrar que, enquanto escritor, enquanto romancista, antes de escrever uma história é preciso construir uma paisagem, uma espécie de mapa complexo da época e para se escrever livremente, de seguida, é preciso escrever sob condições de um diagnóstico daquilo que nós somos no espírito contemporâneo, e todos os meus livros escrevi-os sob as condições deste diagnóstico.
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