Exonerado pelo artista, vinte e cinco anos decorridos sobre a entrada ao seu serviço, ou sobre o início da protecção que o mesmo lhe estendera, Salai despedir-se-ia dele sem ceder às lágrimas, senhor de uma arrogância subitamente conquistada. Tomou pois o bornal, meteu aí uma bucha de pão, pôs o cantil a tiracolo, e declarou antes de abalar, "Saio assim, amado Mestre, como cheguei, sem alforge onde guardasse uma só moeda, nem almofada onde descansasse a cabeça." (...) Salai alongar-se-ia portanto na recordação dessa passagem bíblica, tão amiúde repetida na catequese do velho pároco Oreno, que recomenda a sacudir a areia das sandálias, sempre que nos expulsam de um lugar de afecto, ou nos negam o salário da gratidão. E adoptaria o itinerário de Florença (...) e a descida a Roma após as relaxações em que se atolara se lhe afigurava colocar em risco a salvação da própria alma. Vazia do homem que o acarinhara, e por isso da expectativa que em moço havia alimentado de vir a fechar-lhe os olhos, a república dos Médicis recebê-lo-ia, ou tal acreditava ele, como o asilo se franqueia ao vagabundo que lhe bate à porta, de cajado numa das mãos, e de escudela na outra.
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Cláudio, Mário. Retrato de Rapaz. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2015, pp 100-101.
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