domingo, 2 de agosto de 2020



"Meu filho", retomou o sábio, e prosseguiu, "voltaste para atravessar, guiado por mim, as águas deste rio, e não no corpo em que ainda ficas (...). O enfermo cobrou alento, e reassumiu a fala em voz clarificada, "Nunca na verdade abandonaste esse que te foi casa e janela do mundo, messe e colheita, cama e sombra, olhar e livro da vida, cárcere e paisagem, festa e nudez." O rei pediu uma copa de cordial, e tocou com ela os lábios do moribundo. E reverteu este assim e em surdina, ao seu discurso in extremis, "Por ti sujei de tinta os dedos que minha Mãe beijou, fundi cavalos entre faúlhas que me queimaram as barbas, escavei a terra em busca de nascentes que não me mataram a sede, e separei os estames do lírio que se desfizeram em pólen." Arfou no limiar das forças, mas volveu à sua mensagem com estas palavras, "E porque não haveria de te amar, se nunca me mentiste, se nunca me roubaste, se nunca comeste como um bárbaro, se nunca bebeste como um louco, se nunca avistaste um dos meus códigos sem que te apetecesse abri-lo, (...) se cometeste tais falhas, algumas delas, ou todas, sempre afinal vieste ter comigo, meu Amor, rastejando como o rafeiro de focinho lavado em pranto." E o génio calou-se por momentos, mas num arranco terminal articulou ainda devagar, e alto e bom som, o seguinte, "Meu Filho, meu Companheiro, meu Irmão, meu Eu, meu Tudo", e uns quantos vocábulos mais, irremediavelmente incompreensíveis. Ordenou então Francisco I que se adiantassem com uma ventarola de cambraia (...).
Francisco I, de Valois-Angoulême, duque de Milão, e rei de França, galante como nunca, flectiu um joelho, assentou o outro no mosaico da câmara, e inclinou a fronte sobre a mão esquerda do mestre, a inerte, a que se lhe resvalava do peito, e lhe penderia afinal da cama sem amanhã.
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   Cláudio, Mário. Retrato de Rapaz. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2025, pp 132-134.
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