Álvaro Alves de Faria, neste seu livro
intitulado Em Contramão (Palimage, 2020) mantém-se fiel a uma dualidade
fundamental que tem sido a pedra de toque da sua produção poética: a) a procura
de uma expressividade que traduza, o mais fielmente possível, dadas vivências
individuais (“Queria saber lidar com a vida,/ mas isso não é para iniciantes”,
23:6-7, neste meu texto, o primeiro número dirá sempre respeito à página e os
números seguintes aos versos; “Não me adivinho/ nem sei quem sou/ no instante
em que me revelo”, 41:4-6)) e igualmente certas interpretações de cariz universalizante,
sejam estas de tipo antropológico (“Antigo é o suor do homem(…) Frágil é o
homem/ que carrega a própria alma/ sem nunca saber”, 13:6-11); metapoético (“Canto
a poesia ainda possível/ neste vale de lágrimas,/ esta poesia que fere,/ que
corta. 47:1-4); social (“O que sei é que tenho vontade de explodir coisas,
especialmente prédios oficiais/ onde eles se reúnem todas as tardes” 61:2-4;
“Farei um favor à humanidade: explodirei o mundo amanhã/ao entardecer, para ser
mais romântico”, 67:1-3), etc. Esta procura
é feita pelo poeta através, não de uma linearidade discursiva eventualmente
redutora da complexidade, mas antes recorrendo a procedimentos vários de
desconstrução da linguagem; b) a fuga a qualquer tentativa de etiquetagem de
estarmos perante uma poética de livro único; Alves de Faria, sem fugir à
coerência interna da sua já longa produção poética, desmultiplica-a em obras,
que, apesar de se tangenciarem aqui e ali, enformam um somatório de livros
autónomos e perfeitamente individuados – breve exemplo: em Desviver (Escrituras,
2015) a tese central encontra-se subordinada a uma forte formalização do
sentido, onde as contradições e os paradoxos se regem por um trabalhar da
linguagem onde pontificam anáforas, aliterações e assonâncias; em elegias da
mão esquerda (Palimage, 2017) o sentido distende-se dando azo a longos
poemas monostróficos em verso livre; em A duas vozes (Palimage, 2018)
surge uma obra de cariz dialogal, onde o poeta brasileiro vai trocando
instantes, visões e interpretações com a poetisa portuguesa Leocádia Regalo.
Por tudo isto, percebe-se a persistência e a maestria com que Álvaro Alves de
Faria tem sabido edificar uma obra sólida e consistente.
Neste seu livro Em Contramão, o
poeta recorre, ao nível da explanação do sentido, ao entrecruzamento de
paradoxos (“Cada um à sua maneira tenta viver/ o que já é o bastante/ diante do
nada que há.”, 37:13-15; “O coração está morto/ mas ainda pulsa/ ainda pulsa/ o
coração que está morto.” 95:20-23); contradições (“que seja assim este andar
sempre por lugar nenhum”, 27:9; “Canto essa poesia ainda possível/essa que não
existe mais”, 47:15-16); oxímoros (“lúcida loucura” 73: 15) e repetições de
palavras e expressões (Cf. pp 97, 99, 119). O cismar do eu poético, complexo,
desalentado, ora perscrutador ora assertivo, seria intraduzível por uma
qualquer linearidade discursiva, daí Alves de Faria enveredar por um procedimento,
que, qual enorme caleidoscópio verbal e de imagens, nos desvela e reforça o
sentido que pretende fazer passar. Este tipo de ancoragem do discurso poético,
remete-nos para a tese de John E. Jackson relativamente à poesia de Paul Celan,
que, segundo este especialista da poesia moderna, se serve de um assumido
caráter paradoxal, para assim poder falar dos vários tipos de experiência
vivida nas nossas sociedades. Jackson exemplifica com versos que Celan recolhe
de Verlaine e de François Villon, que depois de os modificar lhes imprime os
paradoxos pretendidos, e o ensaísta conclui: “Um tipo de discurso no qual o Não
não está separado do Sim é, em certo sentido, paradoxal (…) tal superação do
princípio de identidade parece em todo o caso uma das caraterísticas de Niemandsrose.
(…) O efeito radica aqui na causalidade paradoxal que identifica a curva
(Krumm) e o direito (gerade). Também aqui, como no caso das rosas (num outro
poema), poderemos concluir que o paradoxo é solúvel” (In La poésie et son autre.
Paris: José Corti, 1998, pp 83-84). Ora, Alves de Faria, segue uma
estratégia formalmente semelhante: colocado num hoje marcado pela hecatombe e
por escombros, ameaçado pela desesperança e pela consciência da ruína e do
desencontro (“Perdido entre as nações que vivem dentro de mim,/ mas sou
estrangeiro em todas elas”, 27:1-2; “seguindo um destino/ que termina em
nada,/vais ao encontro de teu abismo/e não sabes voar”, 69:5-8), por
conseguinte, e ao nível das dimensões da temporalidade, o poeta vive um presente
ameaçado pelo desastre – rondando a filosofia de Cioran! – lembra um passado,
louvável mas irremediavelmente perdido, e, de tudo isto, infere um futuro
antecipadamente condenado. Contudo, é através da memória (“Alguma memória
nasce/- alguma memória sempre nasce-/neste tempo de barbárie,/ como um milagre
qualquer,/desses que acontecem nas igrejas(…)/ sempre nasce uma memória/(…)
para o agora”, 75:1-10), da ousadia (“Eis meu D. Quixote/a atravessar os
desertos das almas/como se fosse salvar o mundo”, 19:1-3) e da imaginação
(“Sempre haverá um sol em alguma janela/assim tão amarelo/que o próprio amarelo
não conhece. 25:1-3), que o poeta, como já assinalámos, supera os paradoxos,
deixando uma ténue frincha aberta ao (ainda) possível e é assim também que ele
escapa, neste livro, a um solipsismo desistente e absoluto, bem como a um
ceticismo radical. Álvaro Alves de Faria consegue deste modo que um quotidiano
e uma interioridade poética complexos e plurifacetados passem de uma perceção
individual a uma universalidade em que o leitor atento se reconhecerá, ou seja,
a sua poética não se fecha numa mera prestidigitação lamentosa, individualizada
e hermética, antes é a objetivação, a universalização, de um estar-aqui em que
todo o leitor atento se reconhecerá, e essa é a marca de água da verdadeira
poesia lírica (Cf. Theodor W, Adorno. Poesia Lírica e Sociedade. Coimbra:
Angelus Novus, 2003, pp 13-29), é através dela que Álvaro Alves de Faria, mesmo
vindo Em Contramão, acaba por se encontrar com todos nós mediante a sua
acuidade e o seu brilhantismo poético.
Paralelamente a tudo o que foi dito
relativamente ao poeta brasileiro Álvaro Alves de Faria, urge realçar o papel
determinante que o artista plástico português Rui Cavaleiro desempenhou na
concretização deste projeto que viria a desembocar na consecução do livro Em
Contramão, aliás, os desenhos são mesmo, neste livro, a mola impulsionadora
dos poemas. Estamos habituados a ver o desenho funcionar como ilustração da
palavra escrita, ora aqui sucede exatamente o inverso: o encontro, numa Rede
Social – o Twitter -, entre poeta e artista gráfico viria a originar um diálogo
artístico que se prolongaria por mais de dois anos: os desenhos postados inicialmente
por Rui Cavaleiro na dita Rede eram, num segundo momento, enviados a Alves de
Faria, que assim o solicitava e sobre eles escreveria um poema. Deste profícuo
encontro e, diremos mesmo, desta convergência no olhar o mundo e no
interpretá-lo, sem que cada um perdesse a sua especificidade, resultaram 55
desenhos e 55 poemas, que formam o livro de que temos vindo a falar.
Sem pretender elaborar uma hermenêutica do
trabalho de Rui Cavaleiro nesta obra, convém, no entanto, enfatizar algumas variáveis
de suma importância e que, não por acaso, estão em consonância com a parte
poemática da obra. Assim, neste trabalho gráfico posemos encontrar: a ironia (p
16), essa ironia surge por vezes eivada de algum desalento (pp 52, 56), em
outras de uma certa acidez (pp 54, 64); o humor (p 28); a crítica social e
política (p 114), mas também o comprometimento com momentos e causas (p 120); o
vivencial, que no trabalho de Rui Cavaleiro, aparece recorrentemente marcado
por uma enorme solidão das figuras retratadas (pp 24, 44, 46, 48, 52, 74), o
que faz aparecer como corolário certos desenhos nomeadamente o da página 70,
como se aí se acenasse a tese, ilustrada igualmente pelo poeta, de que de um
mundo de escombros e de ganância, para usar aqui a expressão de Peter Singer,
só pode derivar esse par antinómico que é, por um lado o desespero, mas por
outro, a indignação, a revolta e a vontade de superação deste imprestável
aqui-hoje. Creio ser exatamente neste território que desenhos e poemas
iniciaram o seu diálogo e, consequentemente, acabaram por se encontrar.
Ainda relativamente ao trabalho gráfico é
importante assinalar, que, nas suas opções estilísticas, o desenhador/ pintor recusa
correntes estéticas como o Abstracionismo, o Hiper-Realismo e o Simbolismo,
para assumir, muitas vezes de forma veemente, um certo Realismo de cariz
social, contudo, convém afastá-lo dos primeiros momentos da pintura
neorrealista, embora seja possível traçar convergências entre alguns desenhos
de Rui Cavaleiro e as fases ulteriores de pintores neorrealistas como por
exemplo Rogério Ribeiro (Cf. quadros Pateo, Dor ); existe também, na
minha opinião, alguns desenhos que fazem lembrar os grandes quadros do Fauvismo
(Cf. Quai des Grands Augustins e Saint-Michel et le Quai des Grands
Augustins, ambos de Albert Marquet) e em outros Rui Cavaleiro usa com
tenacidade e mestria técnicas de colagem e de sobreposição de materiais. Importa,
no entanto, deixar vincado que este espraiamento gráfico, não deriva de um
qualquer sincretismo tateante, mas antes da consciencialização de que perante
uma realidade múltipla, complexa e desdobrável importa recorrer a formas
igualmente múltiplas de a entender e captar essa mesma realidade, e, nesse
sentido, podemos concluir então que a opção estética de Rui Cavaleiro foi feliz
e eficaz.
Victor Oliveira Mateus
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