terça-feira, 14 de setembro de 2021


                                       Museu do Futuro

               mano e cielo e terra (Dante, Paradiso, XXV, 2)


Haverá somente peças desirmanadas nesse museu do futuro a que um dia chamámos planeta. Seja esta a melhor hipótese. Ocorreu-me, por entre destroços e sombras, definir o pensamento como o lugar onde corrigimos, em permanência, os abusos e as intrusões que nos legaram. Caminho dentro de uma cidade, retomo a sua capilaridade. Alguém te abandonou, como se abandona um artefacto sem préstimo, excluído da soberania da função, dos seus sistemas e métricas. Deverá haver um dia uma assinalável descrição destes objectos corrompidos, sem uso reconhecível. Haverá vitrinas, vidros limpos que separem a ferida dos que a contemplam, que os separem de vez, que os afastem de uma pestífera vontade de toque e apropriação. Cada um dos visitantes desse museu de peças desirmanadas será uma fera domiciliada na sua impotência perante o Paraíso que está para lá da mão, do céu, e da terra..
.
.
 Luís Quintais. Ângulo Morto. Porto: Assírio & Alvim, 2021, p 107.
.
.
.