quarta-feira, 10 de novembro de 2021


                 Manuel Silva-Terra e a Crítica da Razão Geométrica


                                                  por Victor Oliveira Mateus


Neste ano de 2021, Manuel Silva-Terra publica um novo livro: Holderlin (Editora Licorne). Comedido, discreto, este poeta tem vindo ao longo dos anos a edificar uma obra consistente e de uma circunspeção invulgar no panorama atual da nossa poesia. Alheia a circunstancialismos epocais e à gratuitidade de tantos determinismos, a poesia de Manuel Silva-Terra tem optado pelo cismar, e pela inquirição, não só daquilo que no humano é interioridade, mas também não descurando todos os vetores (cultural, económico, ecológico, etc.) que contextualizam o que essa interioridade é chamada a viver.

MST inicia o seu Holderlin com um poema que é simultaneamente uma invocação à mãe e uma justificação da recusa do poeta alemão em enveredar pela vida clerical. Este poema, formado por duas estrofes (uma quadra e uma sextilha), em versos heterométricos e livre de qualquer esquema rimático, apresenta-se neste livro como paradigma das preocupações estilísticas que marcarão toda esta obra. Mas há mais: neste poema frontispicial correm os dois veios que irão estar interconectados ao longo de todo este Holderlin , e que são: os aspetos biográficos do poeta romântico e as inquietações do eu poético relativas à contemporaneidade.

Quanto ao primeiro veio aqui referido encontramos logo a referência a Leuffen, (11/6, o primeiro número dirá sempre respeito à página e o segundo à linha do texto) a cidade onde nasceu, assim como a presença da mãe (11/1) – convém referir que o pai de Holderlin morreu cedo -, já quanto ao segundo veio, concentremo-nos nas alusões à Liberdade e às asas, termos esparsos por todo o poema.

Se aceitarmos a tese generalizante de Joseph Beuys de que “todo o homem é um artista”, teremos de enfatizar que nem todos o são do mesmo modo, MST demarca-se de um diletantismo à imagem de um Marino Aurati, bem como de uma visionação à la Aleister Crowley; embiocar o discurso não é a marca de água desta poesia, já que para o complexo basta a intuição (1) do poeta, bem como aquilo a que ele almeja, e que não se restringe, obviamente, a qualquer tipo de práxis lúdica, antes centra-se no vivido e numa certa degenerescência do meio, que com esse vivido interage, pelo que MST, se acaba colocando num continuum onde se insere uma miríade de autores (2). Por tudo isto, o complexo metamorfoseia-se e atinge-nos naquilo que em nós é mais profundo. Veja-se, por exemplo, um “momento” poemático extremamente forte:

Os deuses ainda não acabaram a tarefa

de criar um homem.

A terra carrega a sua leveza

e o céu o seu peso.

O Homem é uma criatura inacabada

por isso imperfeita.

E assim estamos violentamente sós

selados pelo sinete do porvir.

Cada um é uma construção feita

a partir de materiais recolhidos no entulho

de antigos fundamentos e reconstruções.

(p 26)

Por conseguinte, e se o poético não reside exclusivamente no Objeto, como prefeririam os adeptos de um Realismo Especulativo, mas antes – como eu penso - na Correlação entre ele e um Sujeito que o apreende e interpreta, poder-se-á dizer que esta poesia se instala naquilo que é claro e distinto para, a partir daí, instaurar a fulguração desse mesmo poético. Dito de outra maneira: este Holderlin estabelece-se no seio de uma Razão Geométrica, sitia-a, e lança os seus dardos a partir daí; é a célebre traição por dentro tal como a praticaram Diderot, Voltaire e d’ Holbach. Vejam-se também o que poderia ser uma Arte Poética e que ilustra a minha tese:

Pensam que o poema é apenas

Um conjunto de palavras alinhadas?

Não. Em cada poema

cada palavra é uma gota de sangue do ser-poeta.

O poeta é aquele que bebe o cálix até ao fim

- Seja do que for – até ao fim!

Seja de fogo, seja de gelo.

O poeta esvazia o cálix, seja de veneno, seja de amor.

O poeta não gosta do bom gosto

nem aprecia a sensatez.

A poesia nada faz pela metade.

(p 25)

***

Como um gato

o poema deve ter pelo sedoso

e língua áspera

chegar rápido e em silêncio

preparar o salto para o teu colo.

Em troca dá-te o ron-ron do universo.

O poema gosta de brincar

jogar com as palavras

enroladas numa bola de papel

mas pode ferir-te com as garras

se o excitares demasiado.

O poema deve ser diurno

mas ver melhor durante a noite

as profundidades da alma.

O poema deve iluminar e cegar.

(pp 42-43)

E todo este Holderlin percorre uma via simultaneamente dual e com dois caminhos paralelos: a) no relativo à biografia do poeta alemão, assumem destaque os poemas onde a figura de Diotima (3) tem uma presença privilegiada (pp 17, 23, 40), mas também se encontram versos com referências à família Zimmer (14/6), que o acolheria nos seus últimos anos; a Píndaro (18/7) poeta que ele traduziria; a Schiller, seu mestre (22/14); ao rio Neckar (16/25), que banha a cidade de Leuffen, onde ele nascera, etc.; b) o segundo caminho é aquele onde o poeta escalpeliza todo este aqui que nos é dado viver, bem como o processo que a este ponto nos trouxe: a “Companhia do Lucro” que nos roubou a alma (18/26); Auschwitz (19/7); Greta na Cimeira Mundial do Clima (20/15); o cerco de Leninegrado (24/22); Hiroxima (27/24); a chuva ácida (39/22), enfim, nada escapa à lucidez – tantas vezes desalentada – do poeta:

Tornei-me uma pessoa sensível, dizem

porque adquiri o hábito de andar com uma navalha no bolso.

Por isso me afasto dos homens.

(p 32)

Esta lucidez está, por vezes, eivada de uma ironia ácida, onde o peso das maiúsculas nos impede qualquer desatenção:

A poesia é um Pandemónio

para os Donos Disto Tudo.

Amo sobretudo as prostitutas, sabes?

São autênticas.

(p 36)

E à pergunta “Que fundações são as deste mundo?” (p 30), MST dá ele mesmo a resposta, que surge, aliás, como título deste meu texto: “Não sabíamos da maldade de razão matemática/ posta ao serviço das engrenagens mecânicas. “(p 19); “Vejo os melhores espíritos da minha geração/ trabalhando em publicidade e marketing.// Outros desenvolvendo algoritmos/ enquanto as baleias sufocam com os plásticos.//(…) E eu perdido neste labirinto, sem fio nem Ariadne.” (p 31). É por esta hecatombe que nos é dada vivenciar, e que o poeta põe a nu, que Isabel Aguiar – no seu rigoroso e poético prefácio a este livro – relaciona, e bem, esta obra de MST com o conceito de meta-ética de Rosenzeig (4): um adequado olhar sobre um livro raro.

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(1) “Ce mouvement est, bien entendu, l’intuition, mais interprétée non pas comme une faculte privilégiée et supraintellectuelle de connaissance, c’est-à-dire comme une manière néo-romantique d’aborder le réel, mais plutôt – et sur ce point Bergson lui-même avait maintes fois insisté – comme capacité de se poser au niveau de la durée et de suivre toutes ses nuances.” Carlo Migliaccio in Bergson pour maître. Magazine littéraire, Nº 333 – Juin 1995, p 36.

(2) “El arte (en particular la poesia y la música), oberva Ortega, era a comienzos del siglo veinte algo de enorme importância tanto por su contenido, que abordaba los grandes problemas de la existência, como por la solemnidad y la dignidade que su ejercicio conferia. En pocos lustros esta digna función se pierde: el arte se há visto investido de um processo de privación de vida, que lo há empujado hacia la periferia de la experiencia vital. El arte se há convertido en algo próximo al juego o, incluso, al deporte, al tiempo que todo Ocidente parece haber entrado en su fase de puerilidad.” Mario Perniola in La estética contemporânea. Madrid: Machado Libros, 2016, pp 49-50.

(3) Susette Gontard, mulher de um aluno seu, Jacob Gontard, que viria a ser o seu grande amor. Após o último encontro de ambos, em 1800, a saúde mental de Holderlin iniciou uma deterioração acentuada.

(4) Cf. Rosenzweig, Franz. L’Étoile de la Rédemption. Paris: Éditions du Seuil, 2003, pp 121-124.

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In Lógos, Biblioteca do Tempo, Nº 9/ Novembro 2021, pp 161-167.

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