quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Na foto da esquerda para a direita: Delmar Maia Gonçalves, Victor Oliveira Mateus, Manuela Gonzaga, Luis Pires dos Reys.
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PRÉ-PUBLICAÇÃO
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Breve contributo para uma leitura de O caminho dos sete sentidos de
Manuela Gonzaga

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 Estruturar um livro de poesia com uma produção textual que abrange algumas décadas com textos que oscilam entre os longos poemas monostróficos e temas tangenciando o registo memorialístico e onírico, que, registe-se, jamais caem no prosaísmo, sem esse trabalho perder a coerência interna que deve sempre presidir a um livro de poesia, uma iniciativa desse tipo, não acessível a muitos, é levada a cabo com subtileza e eficácia por Manuela Gonzaga em O caminho dos sete sentidos.

Não sendo possível, através da poesia, expor um sistema filosófico, nem modelos científicos e cosmogónicos devidamente articulados e fechados é, no entanto, viável cismar-se poeticamente em torno dessas áreas disciplinares, temos como exemplos: Antero de Quental, Teixeira de Pascoaes e Natália Correia no que diz respeito ao filosofar, e no que diz respeito à ciência convém não esquecer o célebre Limite de idade de Vitorino Nemésio. Manuela Gonzaga, neste seu livro, entrega-se a inquietações intelectuais distintas dos poetas referidos. Logo no poema Perséfone (p 17) estabelece as três dicotomias que irão ser o fundamento organizativo desta obra: sombra/ Sol, permanência/ devir cíclico, morte/ vida:

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Sou a rainha da sombra a senhora

do reino das trevas a anfitriã

dos mortos.

 

(17, 1-3; neste texto o primeiro número dirá sempre respeito à página e os seguintes indicarão os versos)

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 Estas linhas axiais, em torno das quais se estrutura este livro, surgirão recorrentemente, embora com outras formulações, veja-se o poema Deméter :

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 O Senhor dos Infernos guarda

a minha filha.

Fez dela rainha

Do seu vasto reino.

 

(20, 16-19)

 Veja-se também, no mesmo poema, a problemática do “devir cíclico”:

 Agora sim, minha alma luz,

adorada

vais voltar.

Perséfone, estou à tua espera

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 (21, 20-24)

 Estes tópicos não nos surgem apenas nos poemas com carga ontológica, mítica e cosmogónica, eles irrompem igualmente em poemas onde o antropológico é predominante, como por exemplo no extenso poema África :

 

Cais de náufragos

em cidades mortas

onde aportei em meu contínuo naufragar

depois de enterrar os mortos

e esquecer o local das suas sepulturas.

Às vezes ainda lá vou

queimar imagens de deuses

em lareiras que nem existem

e ouço-me

a chamar por eles

e fico

de mãos feridas a escavar palavras e silêncios.

Procuro, procuro.

 

(45, 17-24; 46, 1-5)

 Estes versos fazem ressaltar dois outros temas fundamentais deste livro: um, a morte e a vida não são opositivas; dois, a comunicação entre os dois territórios processa-se através de ritos. Estas teses aparecem-nos tanto em filósofos cristãos como em religiões pré-cristãs: vejamos, por exemplo, o final do Sermão 5b de Eckhart, onde é eliminando o criatural que se vivifica em nós o ser divino:

 Aí onde termina a criatura, começa o ser de Deus. Ora, tudo o que Deus te pede, é de sair de ti mesmo segundo o teu modo criatural de ser e deixar Deus entrar em ti.

 (In Eckhart, Traités et Sermons. Paris: Flammarion, 1993, p 256, tradução e sublinhados de minha autoria)

 Esta infração da Lógica da Identidade, onde a morte pode vivificar e a vida ser uma espécie de morte e onde até a sombra pode iluminar, conduzindo-nos a um monismo de fronteiras esbatidas e de permeabilidade entre territórios aparentemente distintos, a esta infração responde um texto de Manuela Gonzaga, Testamento de vida:

 E nestes dias, nestas noites, todas as verdades são diferentes e contraditórias, e essa contradição em si mesma é uma verdade também, e nestes dias, nestas noites passam por nós restos de estrelas, caudas entrançadas de cometas…

 (79, 1-4)

 Nesta linha de leitura, que é a minha, a mediação e a intercomunicação entre o Diferente, ou melhor, entre as múltiplas vertentes do Mesmo , ou ainda, e para usar um conceito desse filósofo pagão que foi Plotino, do Uno, faz-se através de Rituais, veja-se, nas páginas 22 e 23, o poema Elêusis :

 

Sol Céus Vida

minha bendita luz e claridade

calor!

(…)

eis-me de novo nunca cheguei a partir

Nunca!

(…)

Um alto rei

que dizia:

a minha rainha é livre de deixar os seus reinos

 

(22, 1-7; 23, 1-3)

 Esta vitória da luz e da claridade, neste poema, parece apontar para uma síntese redentora e contradizer tudo o que até agora tenho dito acerca das dicotomias Morte/Vida, Sombra/Sol, contudo, convém esclarecer que o discurso anterior se referia ao Ser e neste poema está em causa o Ente. É o homem ou a mulher que através de um Rito alcança a luz e a claridade, é disso que o poema fala.

Eram vários os santuários e/ou lugares de iniciação na Grécia Antiga, a poeta neste seu livro refere aquele que alcançou maior estatuto, o de Elêusis, ao sul da Atenas. Aqui, a religião ainda muito próxima da dos cretenses, introduz novos aspetos como o culto “dos mortos também, como nos dão testemunho os traços de sacrifício perto das tumbas micénicas. Surgem grandes deuses novos, já gregos, como Atena, Zeus (…) Deméter, da qual o mais antigo telestérion (sala de iniciação), em Elêusis, remonta à época micénica; é possível que tenham sido edificados templos, pela primeira vez, mas somente no fim do período.” (In Paul Petit, O mundo  Antigo. Lisboa: Edições Ática, 1976, pp 45-46). Convém, no entanto, enfatizar que eram vários os cultos e as modalidades de rituais, já na Grécia homérica tínhamos, por exemplo, “Em Éfeso, o sumo-sacerdote, que mais tarde usará o nome persa de “Megabyse” carregado de ornamentos reais e sacerdotais de púrpura e oiro, conduz a procissão anual de Artémis, ele é o encarregado de representar a deusa no exterior, nas festas e nos jogos. Em Claros, o sacerdote de Apolo pode exercer a função de profeta. “(In Émile Mireaux, A vida quotidiana no tempode Homero. Lisboa: Livros do Brasil, S/d., p 77, tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen), contudo, Manuela Gonzaga opta por aquele rito de estatuto mais elevado: “Em Elêusis uma das funções essenciais do hierofante consiste em “revelar” aos iniciados os objectos sagrados durante as cerimónias da “epoptia”, a iniciação do segundo grau.” (In Émile Mireaux, op. Cit. P 77). Depois desta referência ao poema Elêusis e de referir como este modo iniciático de desvelamento do real adquire impacto na mensagem que transpassa todo este livro, tornam-se evidentes três conceitos que se apresentam como corolário desta minha linha de leitura: o Caminho, a Aprendizagem (Introspetiva ou Iniciática), o Viandante, aliás evidenciados no próprio título da obra: O caminho dos sete sentidos.

As referências aos conceitos de Caminho e de Viandante atravessam todo este livro, muitas vezes metamorfoseados em vocábulos outros:

 Disseram:

Olha de frente, e era o abismo.

No meu caminho.

 

(30, 8-10)

 

(…) abriu caminho através dos sargaços

Onde se prendia e afogava a minha alma.

 

(39, 7-8)

 

Alguns vão-se embora

Há procura

 

(42, 4-5)

 

E sei que vou acabar por lhe abrir a porta, os braços, o coração,

a alma, o corpo (…) porque é dele que fujo desde o princípio dos

tempos e é ele que quero desde a eternidade, e é ele que procuro

desajeitadamente (…) tacteando às cegas o caminho dos sete

sentidos,,,

 

(78, 7-13)

 Vemos neste último excerto, que o percurso que os humanos são chamados a trilhar, e que assinalei ao longo deste texto, se faz mediante uma Aprendizagem triádica: introspetiva, em diálogo com o meio e iniciática, e é da conjugação de todas elas que resulta a apreensão desse Sentido inerente ao nosso estar-aqui, que nos é dado pelos (nossos) sete sentidos. O número de sentidos nos humanos varia segundo o entendimento dos diversos cientistas, e pode ir dos sete geralmente referidos (olhar, audição, odor, tato, paladar, proprieceção (apreensão espacial do corpo) e equilíbrio) até mais de três dezenas), contudo a poeta jamais refere – explicitamente - quais os sete sentidos que entende necessários ao caminho, e isso parece-me bastante interessante, já que essa ocultação, esse mistério, faz corpo com aquilo a que poderei chamar o nó substancial do livro. Convém, no entanto, não confundir os sentidos tal como são enumerados pela psicologia, pela biologia e outras ciências que falam do corpo com os sentidos de índole metafísica, ética ou mesmo cartográfica e desse equívoco salva-nos o poema Ausência da página 41:

 Presenças ausentes

Presságios

Sinais em todos os sentidos

um rumor de seda

amachucada

passos furtivos

recordações

insistentes

 

Lá fora a noite

agarra-se à janela

 Por fim, e em jeito de epílogo desta leitura, direi tão-só que esta minha interpretação de O caminho dos sete sentidos de Manuela Gonzaga, esta minha chave para uma porta que não existe – como a poeta diz num dos primeiros poemas do livro – aponta para um conceito que atravessa igualmente todo o livro, o conceito de Fundamento que irrompe nos poemas sob quatro formulações: a Grande Mãe (pp 31, 48), Pai (pp 50, 74), Deus (p 71) e Rei (pp 26, 58); quatro termos que referem o mesmo: esse Fundamento que escapa ao rigor e à objetivação, mas que alguns dos Viandantes sabem que Há ao fundo, e na base, do Caminho.

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