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Victor Oliveira Mateus
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Estruturar um livro de poesia com uma produção textual que abrange algumas décadas com textos que oscilam entre os longos poemas monostróficos e temas tangenciando o registo memorialístico e onírico, que, registe-se, jamais caem no prosaísmo, sem esse trabalho perder a coerência interna que deve sempre presidir a um livro de poesia, uma iniciativa desse tipo, não acessível a muitos, é levada a cabo com subtileza e eficácia por Manuela Gonzaga em O caminho dos sete sentidos.
Não
sendo possível, através da poesia, expor um sistema filosófico, nem modelos
científicos e cosmogónicos devidamente articulados e fechados é, no entanto,
viável cismar-se poeticamente em torno dessas áreas disciplinares, temos como
exemplos: Antero de Quental, Teixeira de Pascoaes e Natália Correia no que diz
respeito ao filosofar, e no que diz respeito à ciência convém não esquecer o
célebre Limite de idade de Vitorino
Nemésio. Manuela Gonzaga, neste seu livro, entrega-se a inquietações
intelectuais distintas dos poetas referidos. Logo no poema Perséfone (p 17) estabelece as três dicotomias que irão ser o
fundamento organizativo desta obra: sombra/ Sol, permanência/ devir cíclico,
morte/ vida:
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Sou a rainha da sombra a senhora
do reino das trevas a anfitriã
dos
mortos.
(17,
1-3; neste texto o primeiro número dirá sempre respeito à página e os seguintes
indicarão os versos)
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Estas linhas axiais, em torno das quais se estrutura este livro, surgirão recorrentemente, embora com outras formulações, veja-se o poema Deméter :
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O Senhor dos Infernos guarda
a
minha filha.
Fez
dela rainha
Do
seu vasto reino.
(20, 16-19)
Veja-se também, no mesmo poema, a problemática do “devir cíclico”:
Agora sim, minha alma luz,
adorada
vais
voltar.
Perséfone,
estou à tua espera
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(21, 20-24)
Estes tópicos não nos surgem apenas nos poemas com carga ontológica, mítica e cosmogónica, eles irrompem igualmente em poemas onde o antropológico é predominante, como por exemplo no extenso poema África :
Cais
de náufragos
em
cidades mortas
onde
aportei em meu contínuo naufragar
depois
de enterrar os mortos
e
esquecer o local das suas sepulturas.
Às
vezes ainda lá vou
queimar
imagens de deuses
em
lareiras que nem existem
e
ouço-me
a
chamar por eles
e
fico
de
mãos feridas a escavar palavras e silêncios.
Procuro,
procuro.
(45,
17-24; 46, 1-5)
Estes versos fazem ressaltar dois outros temas fundamentais deste livro: um, a morte e a vida não são opositivas; dois, a comunicação entre os dois territórios processa-se através de ritos. Estas teses aparecem-nos tanto em filósofos cristãos como em religiões pré-cristãs: vejamos, por exemplo, o final do Sermão 5b de Eckhart, onde é eliminando o criatural que se vivifica em nós o ser divino:
Aí onde termina a criatura, começa o ser de Deus. Ora, tudo o que Deus te pede, é de sair de ti mesmo segundo o teu modo criatural de ser e deixar Deus entrar em ti.
(In Eckhart, Traités et Sermons. Paris: Flammarion, 1993, p 256, tradução e sublinhados de minha autoria)
Esta infração da Lógica da Identidade, onde a morte pode vivificar e a vida ser uma espécie de morte e onde até a sombra pode iluminar, conduzindo-nos a um monismo de fronteiras esbatidas e de permeabilidade entre territórios aparentemente distintos, a esta infração responde um texto de Manuela Gonzaga, Testamento de vida:
E nestes dias, nestas noites, todas as verdades são diferentes e contraditórias, e essa contradição em si mesma é uma verdade também, e nestes dias, nestas noites passam por nós restos de estrelas, caudas entrançadas de cometas…
(79, 1-4)
Nesta linha de leitura, que é a minha, a mediação e a intercomunicação entre o Diferente, ou melhor, entre as múltiplas vertentes do Mesmo , ou ainda, e para usar um conceito desse filósofo pagão que foi Plotino, do Uno, faz-se através de Rituais, veja-se, nas páginas 22 e 23, o poema Elêusis :
Sol Céus Vida
minha
bendita luz e claridade
calor!
(…)
eis-me
de novo nunca cheguei a partir
Nunca!
(…)
Um
alto rei
que
dizia:
a
minha rainha é livre de deixar os seus reinos
(22,
1-7; 23, 1-3)
Esta vitória da luz e da claridade, neste poema, parece apontar para uma síntese redentora e contradizer tudo o que até agora tenho dito acerca das dicotomias Morte/Vida, Sombra/Sol, contudo, convém esclarecer que o discurso anterior se referia ao Ser e neste poema está em causa o Ente. É o homem ou a mulher que através de um Rito alcança a luz e a claridade, é disso que o poema fala.
Eram
vários os santuários e/ou lugares de iniciação na Grécia Antiga, a poeta neste
seu livro refere aquele que alcançou maior estatuto, o de Elêusis, ao sul da
Atenas. Aqui, a religião ainda muito próxima da dos cretenses, introduz novos
aspetos como o culto “dos mortos também, como nos dão testemunho os traços de
sacrifício perto das tumbas micénicas. Surgem grandes deuses novos, já gregos,
como Atena, Zeus (…) Deméter, da qual o mais antigo telestérion (sala de iniciação), em Elêusis, remonta à época
micénica; é possível que tenham sido edificados templos, pela primeira vez, mas
somente no fim do período.” (In Paul Petit, O
mundo Antigo. Lisboa: Edições Ática,
1976, pp 45-46). Convém, no entanto, enfatizar que eram vários os cultos e as
modalidades de rituais, já na Grécia homérica tínhamos, por exemplo, “Em Éfeso,
o sumo-sacerdote, que mais tarde usará o nome persa de “Megabyse” carregado de
ornamentos reais e sacerdotais de púrpura e oiro, conduz a procissão anual de
Artémis, ele é o encarregado de representar a deusa no exterior, nas festas e
nos jogos. Em Claros, o sacerdote de Apolo pode exercer a função de profeta.
“(In Émile Mireaux, A vida quotidiana no
tempode Homero. Lisboa: Livros do Brasil, S/d., p 77, tradução de Sophia de
Mello Breyner Andresen), contudo, Manuela Gonzaga opta por aquele rito de
estatuto mais elevado: “Em Elêusis uma das funções essenciais do hierofante
consiste em “revelar” aos iniciados os objectos sagrados durante as cerimónias
da “epoptia”, a iniciação do segundo grau.” (In Émile Mireaux, op. Cit. P 77). Depois
desta referência ao poema Elêusis e
de referir como este modo iniciático de desvelamento do real adquire impacto na
mensagem que transpassa todo este livro, tornam-se
evidentes três conceitos que se apresentam como corolário desta minha linha de
leitura: o Caminho, a Aprendizagem (Introspetiva ou Iniciática),
o Viandante, aliás evidenciados
no próprio título da obra: O caminho dos
sete sentidos.
As
referências aos conceitos de Caminho e
de Viandante atravessam todo este livro,
muitas vezes metamorfoseados em vocábulos outros:
Disseram:
Olha
de frente, e era o abismo.
No
meu caminho.
(30,
8-10)
(…)
abriu caminho através dos sargaços
Onde
se prendia e afogava a minha alma.
(39,
7-8)
Alguns
vão-se embora
Há
procura
(42,
4-5)
E
sei que vou acabar por lhe abrir a porta, os braços, o coração,
a
alma, o corpo (…) porque é dele que fujo desde o princípio dos
tempos
e é ele que quero desde a eternidade, e é ele que procuro
desajeitadamente
(…) tacteando às cegas o caminho dos sete
sentidos,,,
(78,
7-13)
Vemos neste último excerto, que o percurso que os humanos são chamados a trilhar, e que assinalei ao longo deste texto, se faz mediante uma Aprendizagem triádica: introspetiva, em diálogo com o meio e iniciática, e é da conjugação de todas elas que resulta a apreensão desse Sentido inerente ao nosso estar-aqui, que nos é dado pelos (nossos) sete sentidos. O número de sentidos nos humanos varia segundo o entendimento dos diversos cientistas, e pode ir dos sete geralmente referidos (olhar, audição, odor, tato, paladar, proprieceção (apreensão espacial do corpo) e equilíbrio) até mais de três dezenas), contudo a poeta jamais refere – explicitamente - quais os sete sentidos que entende necessários ao caminho, e isso parece-me bastante interessante, já que essa ocultação, esse mistério, faz corpo com aquilo a que poderei chamar o nó substancial do livro. Convém, no entanto, não confundir os sentidos tal como são enumerados pela psicologia, pela biologia e outras ciências que falam do corpo com os sentidos de índole metafísica, ética ou mesmo cartográfica e desse equívoco salva-nos o poema Ausência da página 41:
Presenças ausentes
Presságios
Sinais
em todos os sentidos
um
rumor de seda
amachucada
passos
furtivos
recordações
insistentes
Lá
fora a noite
agarra-se
à janela
Por fim, e em jeito de epílogo desta leitura, direi tão-só que esta minha interpretação de O caminho dos sete sentidos de Manuela Gonzaga, esta minha chave para uma porta que não existe – como a poeta diz num dos primeiros poemas do livro – aponta para um conceito que atravessa igualmente todo o livro, o conceito de Fundamento que irrompe nos poemas sob quatro formulações: a Grande Mãe (pp 31, 48), Pai (pp 50, 74), Deus (p 71) e Rei (pp 26, 58); quatro termos que referem o mesmo: esse Fundamento que escapa ao rigor e à objetivação, mas que alguns dos Viandantes sabem que Há ao fundo, e na base, do Caminho.
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