segunda-feira, 6 de dezembro de 2021


João de Mancelos é docente universitário e crítico literário. Paralelamente a essas atividades tem desenvolvido, ao longo dos anos, uma intensa atividade no que diz respeito à publicação de uma plurifacetada obra própria. Assim, e por não ser a finalidade deste texto o enumerar toda a produção do autor, saliento apenas: no ensaio, “O marulhar de versos antigos: a intertextualidade em Eugénio de Andrade” (2009), “Magia negra: a obra de Toni Morrison” (2014), “Todas as cores da América: a literatura multicultural” (2015); na poesia, “O teu nome incendiado de azul” (2016); na ficção, “Nunca digas adeus ao verão” (2021) e o presente livro de que passarei a falar.

Em “a rapariga que adorava finais felizes “(edições Colibri, 2021), João de Mancelos apresenta-nos um conjunto de treze contos que entretecem entre si aspetos comuns, o que dota a obra de homogeneidade e coerência, mas que, com exemplar fineza, introduz nesse mesmo comum uma miríade de categorias e subcategorias da narrativa, que tornam cada conto, não só completamente autónomo, como impossível de ser articulado com qualquer outro. Vejamos: entre aquilo que é semelhante podemos notar um certo etarismo, não com qualquer intento de descriminação, mas porque se visa fornecer um olhar específico sobre dados modelos comportamentais e dadas formas de sentir (ex.: pp 54-55), por isso, e à exceção do antepenúltimo conto, todos os narradores e personagens rondam a idade dos vinte anos. Também ao nível literário estamos perante um tipo de Realismo Social e Económico (atente-se às marcas da roupa, dos utensílios, dos carros, aos tipos de alojamento, às ocupações dos jovens, etc.), mas que, em dados momentos irrompe por um certo Realismo Lírico adentro (ex.:pp 36-37, p 39, pp 85-87) e encontramos mesmo dois contos situados entre o Fantástico e o Realismo Mágico (pp 59-63, 65-69) e estes dois contos, levam-nos a concluir que nada neste livro foi deixado ao acaso: numa conferência dada em 2015, subordinada ao tema d’ “as configurações do real”, Tristan Garcia não deixa de referir o ataque de Barbey d’Aurevilly a Zola, bem como o de Flaubert a Balzac, quando diz que este último ao querer fazer romance sociológico acabou desaguando em plena sociologia, já que para que serve, segundo T.G., reproduzir um real que já está ante nós e que não nos necessita para absolutamente nada?, daí a possibilidade de falar desse real de um outro modo e é aí que entra outro tipo de ficção, nomeadamente a dos dois contos de João de Mancelos que mencionei acima. Dito de outro modo: “em a rapariga que adorava finais felizes”, o autor não só experiencia vários tipos de registos dentro do Realismo (até de códigos linguísticos!) como também desmultiplica as categorias da narrativa em subtipos vários: narrador não participante (pp 11-15), narrador autodiegético (pp 47-51), narrador homodiegético (pp 65-69), etc., etc. O mesmo acontece ao nível das outras categorias da narrativa. Estamos, pois, perante uma tessitura onde o académico e o ficcionista decidem dialogar para, utilizando todos os recursos ao seu dispor, dar a ver – e a ler – dados agrupamentos sociais. E aqui, apenas como adenda, direi tão-só que João de Mancelos foge a “pintar” guetos ou elites: as suas personagens e os seus narradores são gente normal, daquela que se cruza connosco diariamente nos cafés, nas gasolineiras das autoestradas, nas estações de comboio; normal, não no sentido do espetacular denunciado por Debord, não no sentido do narcísico denunciado por Marie-France Hirigoyen, mas normal no sentido estatístico de Aldous Huxley ou no sentido do produzido por uma forma de poder específica como em Foucault, dito de outra maneira: João de Mancelos, através de um trabalho incomum, traz até nós, em “a rapariga que adorava finais felizes”, gente comum.

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Victor Oliveira Mateus

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