Vida
Os meus mortos não morreram nem sequer me pertencem.
Vivem na fímbria das estrelas, em animadas conversas
com deuses de parte incerta, que lhes invejam a graça,
o estilo e o modo peculiar como dobram
com a ponta da língua algumas consoantes mais afoitas.
Os meus mortos espreitam-me sempre do lado de lá.
Vigiam-me o sono com os seus delicados olhos de âmbar
e ciciam palavras redentoras que me agasalham os dias
e apaziguam as noites mais escuras.
Os meus mortos visitam-me sem se fazerem anunciar.
Trazem-me memórias embrulhadas nos mais finos cetins,
cobertas com uma fina película de orvalho,
que apenas me atrevo a abrir
quando pouso a cabeça sobre a almofada
e ouço as suas vozes suaves virem ao meu encontro.
Sérgio Almeida. revolver. Lisboa: Guerra e Paz Editores, 2022, p 32.
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