Clarão
Certas noites, quando sou o último
a sair da sala, gosto de fingir
que me esqueço de apagar a luz
e deixo a luz acesa toda a noite
É claro que são mais uns quantos euros
na conta da EDP ao fim do mês.
Mas há coisas mais vastas do que o dinheiro,
coisas que não é com euros que se medem.
Foi bom ter havido toda a noite
aquele clarão silencioso,
que, como o chicote na mão do domador,
espancou as trevas e as reenviou
para o sujo lugar donde tinham vindo.
Sim, uma vezes por outras, é aconselhável
esquecer-se a gente de apagar a luz,
e fazer assim com que a noite
não seja enormemente noite.
Fazer com que um sucedâneo do dia
se sobreponha à noite,
para não tropeçarmos nos escolhos
que fazem da noite aquele lugar de trevas,
perigos, ameaças, aflições.
A. M. Pires Cabral. caderneta de lembranças. Lisboa: Tinta-da-China, 2021, p 10.
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