segunda-feira, 29 de agosto de 2022


        A voz poética não fidedigna


Não ouças o que eu digo; partiram-me o coração.
Não há nada que eu veja objetivamente.

Conheço-me a mim mesma; aprendi a escutar como um psiquiatra.
Quando falo apaixonadamente,
é quando sou menos de confiança.

Realmente é muito triste: toda a vida me elogiaram
pela minha inteligência, os meus poderes de lingagem, de perspicácia.
No fim, foram um desperdício -

Nunca me vejo,
de pé nos degraus da entrada, a dar a mão à minha irmã.
É por isso que não posso explicar
as nódoas negras no braço dela, onde termina a manga.

Dentro da minha mente, sou invisível: por isso sou perigosa.
As pessoas como eu, que parecem abnegadas,
somos nós as anormais, as mentirosas;
somos aquelas a quem se devia dar o desconto
a bem da verdade.

Quando me calo, é quando a verdade irrompe.
Um céu limpo, as nuvens como fibras brancas.
Por baixo, uma casinha cinzenta, com azáleas
de vermelho e rosa brilhante.

Para se ter a verdade, é preciso resguardarmo-nos
de ver a irmã mais velha, tapá-la;
quando se magoa assim uma coisa viva,
nos seus mais fundos mecanismos,
todas as funções se alteram.

É por isso que não sou de confiança.
Porque uma ferida no coração
é também uma ferida na mente.


   Louise Gluck. Ararate. Lisboa: Relógio D' Água Editores, 2021, pp 41-43 (Tradução de Margarida Vale de Gato).
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