O livro O anjo entre o deserto e o não,
de Alexandre Bonafim, insere-se numa temática que tem, ao longo dos séculos,
percorrido a cultura ocidental: o deserto enquanto apelo e fonte de saber e de
transmutação do indivíduo que ousa vislumbrá-lo e percorrê-lo. Contudo, essa
persistência temática em diversos autores não conduz a uma homogeneização dos
resultados, já que cada olhar enforma de uma experiencia vivida específica e de
um sistema de valores e de crenças individual; poderemos, eventualmente,
encontrar zonas que se tangenciam nas diversas abordagens, mas sem que a
originalidade de cada uma delas seja posta em causa.
O deserto em Alexandre Bonafim apresenta, assim,
algumas características fundamentais: encontra-se associado ao dizer (O deserto
diz / com simplicidade / a luz); (Dizer o verdadeiro poema/ é sempre ter a
língua amputada); relaciona-se com a interioridade e a ação (Dentro dos meus
pulsos/ um deserto desatou a ira/ dos cavalos selvagens); é apanágio de poucos:
daqueles que decidem empreender a aprendizagem poética enquanto técnica
linguística e que ousam trilhar esse caminho.
O percurso intentado pelo poeta não é coisa pacífica
(Nada no mundo pode abrigar/ essa dor estrangeira/ extraterrena/(…) que perfura
meus ossos/ meus sonhos), é, por conseguinte, não só uma senda eivada de obstáculos,
por vezes tumultuosos, mas sobretudo uma aprendizagem que recusa todo o tipo de
solipsismo; afirma-se antes como um acrescentamento do eu mediante uma relação
dialógica com o meio e com o outro, e são estes os dois últimos vetores o
fundamental deste "O anjo entre o deserto e o não", aliás, tal como aparecem em
grandes escritores de outras nacionalidades. Empreendendo uma dialética em
relação a esse vazio do deserto, o poeta acrescenta ainda a forte presença do
outro, metaforicamente já anunciado no título (anjo): presença desejada,
presença amada, mas muitas vezes também presença como germe de mágoa e de
desalento. A aprendizagem dos afetos é, neste livro e indubitavelmente, uma
apreensão não resultante de um qualquer delírio ou de uma relação fantasiada,
mas de uma constante interiorização obtida através de um complexo e contínuo
diálogo com o mundo natural, com a palavra e com o outro, outro esse, por
vezes, sob a figuração de uma forte proximidade afetiva.
Dialeto
Teu rosto
jorro de uma palavra
na plenitude
de um idioma cego
(...)
Teu rosto
orquídea
melancólica
vermelha
como a fuga
dos garças
rumo ao sul
Há, no entanto, neste livro, uma deliberada urdidura
da ambiguidade, que remete o leitor, em dadas circunstâncias, para uma interconexão
de referentes, como se estivéssemos ante uma encantada casa de espelhos, onde o
poeta tanto pode estar a falar de um outro exterior a si, como de si próprio,
como ainda do cume absoluto da sua arte: o dizer poético, e caberá ao leitor,
recusando todo o tipo de passividade, aceitar o desafio e fazer-se cúmplice
desta aventura poética, deste deserto; um exemplo disto a que poderei chamar
uma ambiguidade triádica poderá ser encontrada no poema Cigano:
Ele caminha entre o silêncio e o não
Nos lábios o veneno
a rosa vermelha
esmagada pela melancolia
Ele sempre busca a ardência
a caricia de um delicado algoz
Outra figuração do deserto de Bonafim pode ser
encontrada na sua maleabilidade estrutural. Dito de outro modo, este deserto
pode surgir nos momentos mais inesperados e nos contextos mais imperscrutáveis:
na infância, no quotidiano, na afetividade (Deitei-me sobre tua pegada// De mim
restou-me apenas/ o leve contorno do teu não), na memória (Entre meus sonhos/
queima o que foi/ o que não foi/ como a faca/ a perfurar na cicatriz/ uma nova
ferida). Poder-se-á dizer deste deserto o que o filósofo Michael Foessel disse
da Noite : “De fato, nem todos os eclipses são astrais: a noite pode surgir em
contextos imprevistos e, às vezes, simplesmente porque os indivíduos decidem
isso “ (1). Também o deserto de Alexandre Bonafim não se deixa espartilhar por
quaisquer mapas ou cartografia, ele é uma instância muito mais lata e rica; é
essa parcela do Ser cujo atravessamento, por vezes sofrido, trará ao poeta uma
nova e enriquecida aprendizagem do Todo. Este tipo de hermenêutica do deserto
pode ser encontrado também em muitos dos poetas portugueses – e foram vários! –
que nas últimas décadas poetaram sobre o tema, veja-se o caso de Isabel
Cristina Pires (2) – no poema Mapa-Múndi: (No mapa do mundo/ há um lugar/ onde
ninguém foi./ Dói-nos/ esplendidamente.) e no poema Este Tempo Rápido do Mundo:
(Este tempo rápido do mundo/ rouba-nos o corpo à dança sem relógio/ e dói no
coração comido pelo nada./ Leva-nos consigo para dentro da aridez). Em ambos os
casos, quer a poetisa portuguesa, quer o poeta brasileiro, filiam-se num
continuum onde o metapoético se mescla com uma espinhosa aprendizagem,
atente-se, a título de exemplo, às palavras de Alexandre Bonafim:
Poética
Poesia se faz
com arame farpado
contra a carne crua
contra a pele nua
Todavia, apesar dos dois poetas perfilharem uma
conceção abrangente do deserto, há na escrita de Cristina Pires um pertinaz
modo de olhar uma temporalidade específica e um cosmopolitismo não detetáveis
em Bonafim, que opta, antes, por uma sensualidade, um erotismo e um alto
lirismo raros na poesia contemporânea escrita em português, aliás, não é por
acaso que ele no seu livro utiliza uma epígrafe de Dora Ferreira da Silva: dois
versos dessa poeta maior que, no século XX, escreveu em português.
Neste livro de Alexandre Bonafim, o deserto desemboca
num enraizamento quadrifendido do caminhante, simbolizando este o humano no seu
passar pelo aqui: o amor-paixão à boa maneira de Stendhal como pode ser visto
no poema Teu abraço; o alcançar de uma regenerada voz poética detetável no
poema Poética; uma recuperação do corpo (do outro amado? Do texto? De ambos?)
como assinala o poema Orgasmo e, finalmente, uma apreensão, em lucidez e verdade,
do eu:
Palavra
secreta
Eu sou o homem dos olhos impuros
mas minha boca pode ver o anjo de seis
asas
Minha boca pronuncia a inocência
do mais ardiloso vício
Eis
a aprendizagem feita através do deserto de Bonafim! Um acolhimento, como acima
se disse, feito em clarividência e autenticidade: do amor, do corpo, da poesia
e do humano. Este deserto demarca-se, portanto, de tantos outros, como o de
Buzzati (3), do qual tudo se esperava e de onde nada de importante vinha, e que
mais não era do que uma mera fronteira de ansiosas esperas: de rituais, de
envelhecimentos e mortes; o deserto de Alexandre Bonafim é, ao invés, uma
mescla de territorialidade e de experiências passionais e ontológicas.
Em O anjo entre o deserto e o não,
numa cuidada urdidura de vaivém, num luminoso filigranado de imagens e de
conseguidos processos de metaforização, Alexandre Bonafim dá-nos o fruto do seu
apurado cismar poético: uma constelação, onde, como já referi, o amor, o corpo,
o humano e a poesia se entrelaçam.
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Notas
(1) Foessel, Michael. La Nuit, vivre sans témoin. Paris:
Éditions Autrement, 2017, p 156.
(2) Pires, Isabel Cristina. Deserto Pintado. Lisboa:
Editorial Caminho, 2007.
(3) Buzzati, Dino. O Deserto dos Tártaros. Barcarena:
Marcador Editora, 2014.
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