Deus
depois de Auschwitz: uma reflexão a partir de Hans Jonas
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(…) Jonas não nega, certamente, o evento histórico que Auschwitz constitui. Não aborda, porém, a questão sob uma perspectiva histórica, empenhada na descrição da conjuntura económica, política e social, no relevamento dos seus fundamentos, na averiguação das suas implicações e na sua consequente integração num esquema de causalidade onde adquire sentido e finalidade. O mal historicamente enunciado em Auschwitz recusa, com efeito, a sua confirmação a quadros de pensamento já elaborados, gerando uma cisão que recusa em absoluto o âmbito da justificação e da compreensão. Sob o espectro deste absurdo que o séc. XX testemunhou, estremece a própria noção de Deus, considerado nos seus atributos tradicionais – bondade, inteligibilidade e omnipotência. A capacidade que Hans Jonas reconhece a um acontecimento, não só para questionar a ideia metafísica de Deus, como sobretudo para simbolizar a experiência de um mal sem precedentes (…) Na verdade, da reflexão do filósofo alemão depreendemos, não a prova racional da existência de Deus, mas a possibilidade mesma de uma crença religiosa “depois de Auschwitz” a partir de um conceito de Deus capaz de resistir à evidência de um mal excessivo no mundo que, não sendo apenas obra humana, não pode ser também obra de uma divindade essencialmente bondosa. (…) A tarefa da regeneração do conceito de Deus empreendida por Jonas não cede, por conseguinte, à revivificação da crença num Deus que que compreende ou abarca em si mesmo a experiência do sofrimento (…) mas consolida-se, antes, como demanda de um Deus consentâneo com a inexplicabilidade própria do mal. A voz de Auschwitz é, em última instância, o testemunho do silêncio divino. E é na sombra desse silêncio que a concepção metafísica de uma divindade simultaneamente bondosa, revelada e omnipotente se estilhaça. (…) Depreendendo destas palavras a impossibilidade de reconduzir Auschwitz à ideia de bem universal, anula-se e torna-se verdadeiramente indefensável a concepção de um sofrimento redentor. (…) O artigo de Hans Jonas sobre o qual fazemos incidir a nossa investigação – “O conceito de Deus depois de Auschwitz” – debruça-se justamente sobre este problema, reflectindo filosoficamente sobre os contornos deste Deus silencioso em Auschwitz, cuja mão foi incapaz de aí intervir. O conceito de Deus, proposto pelo autor, fundado na tradição judaica, não transcende, é certo, o horror dos campos de concentração nazi, esquecendo-o ou atenuando-o através de uma justificação racionalmente elaborada, mas impede, por outro lado, o seu completo desvanecimento perante o absurdo do mal. (…) Nesta concepção de um esvaziamento de Deus no mundo perpetua-se um acto de renúncia de ser – verbo doado às suas criaturas para que sejam. Recupera Hans Jonas, deste modo, a ideia do “Tzimtzum” da Cabala luriana, ao fazer coincidir o processo da ontogénese com um autodespojamento ou contracçção da Divindade (…) Esta abnegação de si pelo mundo é desvanecimento total de identidade e plenitude divinas porque completa pulverização pelas condições do espaço e do tempo. Imerso num constante devir, o verbo divino conjuga-se num passado, presente e futuro, dispersando-se no fluxo da evolução do real, não se reunindo em si como Ser Absoluto, regente “transhistórico” do Universo. E se este Deus pode ainda ser pensado como Deus-história, ele não mais é pensado como “senhor da História” cuja mão orienta o mundo segundo um projecto divino, mas apenas como um Deus que se temporaliza e se espacializa. Um completo despojamento de si no acto criador não permite que Deus permaneça além do mundo como transcendência que o dirige...A perda de si, inerente ao acto criador, lança a divindade numa viagem sem plano previamente traçado, mas que progressivamente se deixa delinear no fluxo do tempo e, particularmente, pelo resultado das decisões humanas (…) Simultâneamente, Deus oferece-se como máxima presença, porquanto o mundo não é senão divindade caída, e como máxima ausência (…) depois de Auschwitz, o conceito de Deus preserva ainda a sua essência bondosa e inteligível, mas abandona a omnipotência de um Deus que não evitou o sofrimento das suas criaturas. Desvela-se, então, a partir do Deus silencioso de Auschwitz, um Deus impotente que esgota todo o seu poder na totalidade da sua criação. Deposto no mundo – aquilo a que Hans Jonas chama “o grande teatro” -, ele não mais se ergue para o dirigir, mas sucumbe perante as suas forças, confiando o seu destino ao rumo do universo e, em particular, à mão humana. Deus na história não é rei, uma mão poderosa e providente, mas vassalo dos seus acontecimentos mundanos, esperando das suas criaturas um cuidado que ele, desprovido de poder, não pôde nem pode prestar.
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Filipa
Afonso in “A Questão de Deus na História da Filosofia, Vol. II”. Sintra:
Zéfiro, 2008, pp 933-942.
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Nota - Foto de Hans Jonas (1903/05/10 - 1993/02/05).
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