O mundo envelhece, às vezes aziago,
e nós esbanjamos todo o tempo nele.
Sei que é lamentável repetir, mas tu lembras-te
da neve a derreter no fundo raso dos olhos,
como era fácil imaginá-la sem um mapa à mão -
pendurávamos as palavras na corda do rosto
para que soasse tudo certeiro e bem-intencionado?
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Não era perdão o que pedíamos
nesses tempos altivos, era a carne branda
da companhia porque éramos jovens
e vagamente interessantes. A palavra amigo
não tinha sentido algum, era mais um copo de água
numa mesa onde não havia comida, só o tilintar
dos talheres de prata roubados num rasgo de fantasia.
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Hoje podes escrever-me todos os dias.
Não sou rico nem ressentido.
Se me vires na minha cadeira
de-trás-para-a-frente não perguntes -
assisto só aos campos neutros da história,
o costume: o rapaz que fazia poemas de guerra,
o intelectual solene e não-parisiense
que numa mesa de pé-de-galo compôs
muitos versos recalcados à mãe dele.
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Levo para todo o lado o meu cinto-faroeste,
mal me esqueço da minha manha bem disfarçada -
não sou eu que digo que o mundo envelhece,
são coisas que vou ouvindo na rude telefonia
ao passear pelo alpendre de quatro paredes.
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Quando é que ficámos interessantes?
Tu lembras-te. sim, quando ainda em jovens
trocávamos por graça a ordem dos acontecimentos:
fazíamos girar gaivotas nos tectos negros das roulottes
e derramávamos cerveja no areal a caminho do mar,
engolindo corpo e espírito numa espécie de autofagia,
tão bela, demente. Podes escrever-me todos os dias.
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Frederico Pedreira. Coração Lento. Porto: Assírio & Alvim, 2021, pp 31-32.
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