domingo, 17 de setembro de 2023


              Cabelos brancos


Não repares na cor dos meus cabelos
Sem ler primeiro Anacreonte;
Verás que os sonhos juvenis, mais belos,
Também se evolam de enrugada fronte.

O espírito do poeta é sempre moço;
O coração nunca envelhece ...
Basta um sorriso, um nada, um alvoroço,
E tudo nele se ilumina e aquece.

Deusas de eterna graça adolescente,
Jamais as Musas desdenharam
Da luz que treme incendiando o poente,
Dos rouxinóis que ao pôr do sol cantaram.

Fina e frágil vergôntea melindrosa,
Que foi na ceifa abandonada,
Ruth, apesar de moça e de formosa,
Nos braços de Booz dorme encantada.

Quantas flores de inédita fragrância
Em mãos provectas vão abrindo...
Abisag, ao sair quase da infância,
No leito de David entrou sorrindo.

E desse beijo, inverno e primavera,
Desse conúbio, ó maravilha!,
Como se a ruína fecundasse a hera
Veio à luz uma estrela, que ainda brilha.

Esculturais patrícias, de olhos ledos,
Quem as lembrara, se deixassem
Que mãos obscuras, mercenários dedos,
A velhice de Horácio engrinaldassem?

Quantos nomes ilustres! quantos casos!
Mas que  direi mais eloquente?
Não há dias tão pálidos, e ocasos
Como explosões de uma cratera ardente?

Não repares na cor dos meus cabelos;
A branda luz que neles arde,
Como o poente, das nuvens faz castelos,
Tinge de alva o crepúsculo da tarde...

Muita vez os cabelos embranquecem
Na dor de horríveis sofrimentos...
Não são os anos que nos envelhecem;
São certas horas más, certos momentos...
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 António Feijó. Poesia Portuguesa do Século XII a 1915. Lisboa: Editorial Verbo, 1972, pp 209-210 (Organização de Cabral do Nascimento).
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