sábado, 17 de agosto de 2024


Com a maior parte dos seres, os mais ligeiros, os mais superficiais desses contactos bastam ao nosso desejo, ou mesmo já o excedem.. Que eles insistam, se multipliquem em volta de uma única criatura até a cativar completamente; que cada parcela de um corpo assuma para nós tantas significações perturbantes como os traços de uma fisionomia; que um único ser, em vez de nos inspirar quando muito irritação, prazer ou aborrecimento, nos obsidie como uma música ou nos atormente como um problema; que ele passe da periferia do nosso universo ao seu centro, se nos torne, enfim, mais indispensável que nós próprios, e o espantoso prodígio realiza-se, no que eu vejo mais uma invasão da carne pelo espírito que um jogo da carne.
Tais pontos de vista sobre o amor poderiam conduzir a uma carreira de sedutor. Se a não segui foi sem dúvida porque fiz outra coisa, aliás melhor. À falta de génio, semelhante carreira requer cuidados e mesmo estratagemas, para os quais me sentia pouco disposto. Essas armadilhas preparadas, sempre as mesmas, essa rotina restringida a perpétuos encontros, limitada pela pela própria conquista, fatigaram-me. A técnica do grande sedutor exige, na passagem de um objecto a outro, uma facilidade, uma indiferença que eu não tenho relativamente a eles; de qualquer maneira, deixaram-me mais que eu os deixei a eles; nunca compreendi que alguém se saciasse de um ser. O desejo de conhecer exactamente as riquezas que cada novo amor nos traz, de o ver mudar, talvez de o ver envelhecer, concilia-se mal com a multiplicidade das conquitas (...) O amador de beleza acaba por encontrá-la em toda a parte, filão de ouro nos mais ignóbeis veios; por experimentar, ao tocar essas obras-primas fragmentárias, sujas ou quebradas, um prazer de único conhecedor a coleccionar barros considerados vulgares.
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Marguerite Yourcenar. Memórias de Adriano. Lisboa: Editora Ulisseia, 2000, pp 18-19 (Tradução de Maria Lamas).
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quinta-feira, 15 de agosto de 2024


A Décima Edição do FLO (Festival Literário de Ovar) decorrerá naquela cidade de 18 a 22 de setembro. Nela estarão presentes vários escritores portugueses. Eu estarei na Mesa 6 com os romancistas Ana Cristina Silva e Pedro Almeida Maia, e o poeta António Canteiro.
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domingo, 11 de agosto de 2024


BREVEMENTE À VENDA:
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nas plataformas livreiras: Wook e Bertrand;
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nas livrarias: Centésima Página (Braga), Snob (Lisboa) e Online da Editora Labirinto.
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sábado, 3 de agosto de 2024



Eis o segredo da elegância de Brummell; eis, afinal, o segredo de todas as elegâncias: a perfeição discreta, a harmoniosa simplicidade. – “O verdadeiro elegante – dizia Brummell -não deve dar nas vistas.” E Barbey d’Aurevilly repetiu: -“ L’homme bien mis ne doit pas être remarqué.” Na fria distinção do grande dandy havia alguma coisa de sobriedade grega, do maravilhoso equilíbrio ático: a entrada de Jorge Brummell no salão doirado de Lady Giorgiana Spencer, duquesa de Devonshire – então o mais célebre salão de Londres – devia lembrar a do elegante Alcibíades, caminhando, coroado de violetas (…) O favorito de Jorge IV de Inglaterra era um orgulhoso frio, um insolente amável, um impertinente paradoxal, um desfrutador glacial e irónico que olhava para toda a gente do alto do seu desdém (…) que sem ter tido sequer talento (as poucas cartas que dele restam são notavelmente mal escritas), deixou discípulos na literatura inglesa, um dos quais (…) é Oscar Wilde.. (…) Os ídolos depressa caem. Uma bela noite, numa ceia em Carlton-House, quando já o champanhe corria a rodo, Brummell voltou-se para o príncipe de Gales: - “Jorge, chama o criado!” O futuro Jorge IV de Inglaterra empalideceu, mediu de alto a baixo o insolente, puxou o cordão de seda da campainha, e, quando os criados assomaram, limitou-se a dizer: -“Levem esse bêbedo.” (…) Morreu louco, em 1840, num asilo de alienados.

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Júlio Dantas. “O heroísmo, a elegância, o amor”. Lisboa: Delraux, 1980, pp 70-74.

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Jerónimo Colaço e Paiva Araújo representam duas modalidades opostas da elegância do Romantismo: a elegância alegre, expansiva, brilhante, e a elegância triste, byroniana, melancólica. Ambas elas foram queridas das mulheres, mas a segunda foi, quase sempre, infeliz no amor. (…) Quero referir-me a Garrett. Para em tudo ser grande, este homem singular a quem os seus contemporâneos chamaram “o divino”, como a Platão, foi um dos maiores, senão o maior elegante do seu tempo. (…) Quando tinha de pronunciar algum dos seus monumentais discursos, não esquecia nenhum pequeno pormenor de elegância: ele, que não usava rapé, levava sempre consigo uma pequena tabaqueira de ouro para o ajudar nos gestos; e nunca, antes de começar a falar, deixava de esfregar as mãos para as fazer mais pálidas (…) Que elegância majestosa, só comparável à de Lamartine! Iluminava-se, crescia, arrebatava. E, entretanto, Garrett não era belo. Garrett lutava com a falta de dotes naturais (…( Tudo nele era postiço, desde o espartilho até ao chinó (…) desde o chumaço dos ombros até ao bucho das pernas. Quando à noite recolhia a casa (…) desmanchava-se como um puzzle.

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Júlio Dantas, Idem pp 86-88.

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