Com a maior parte dos seres, os mais ligeiros, os mais superficiais desses contactos bastam ao nosso desejo, ou mesmo já o excedem.. Que eles insistam, se multipliquem em volta de uma única criatura até a cativar completamente; que cada parcela de um corpo assuma para nós tantas significações perturbantes como os traços de uma fisionomia; que um único ser, em vez de nos inspirar quando muito irritação, prazer ou aborrecimento, nos obsidie como uma música ou nos atormente como um problema; que ele passe da periferia do nosso universo ao seu centro, se nos torne, enfim, mais indispensável que nós próprios, e o espantoso prodígio realiza-se, no que eu vejo mais uma invasão da carne pelo espírito que um jogo da carne.
Tais pontos de vista sobre o amor poderiam conduzir a uma carreira de sedutor. Se a não segui foi sem dúvida porque fiz outra coisa, aliás melhor. À falta de génio, semelhante carreira requer cuidados e mesmo estratagemas, para os quais me sentia pouco disposto. Essas armadilhas preparadas, sempre as mesmas, essa rotina restringida a perpétuos encontros, limitada pela pela própria conquista, fatigaram-me. A técnica do grande sedutor exige, na passagem de um objecto a outro, uma facilidade, uma indiferença que eu não tenho relativamente a eles; de qualquer maneira, deixaram-me mais que eu os deixei a eles; nunca compreendi que alguém se saciasse de um ser. O desejo de conhecer exactamente as riquezas que cada novo amor nos traz, de o ver mudar, talvez de o ver envelhecer, concilia-se mal com a multiplicidade das conquitas (...) O amador de beleza acaba por encontrá-la em toda a parte, filão de ouro nos mais ignóbeis veios; por experimentar, ao tocar essas obras-primas fragmentárias, sujas ou quebradas, um prazer de único conhecedor a coleccionar barros considerados vulgares.
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Marguerite Yourcenar. Memórias de Adriano. Lisboa: Editora Ulisseia, 2000, pp 18-19 (Tradução de Maria Lamas).
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