sábado, 24 de novembro de 2018


   Gilles Deleuze (1925-1995) é também um autor que se preocupou em ler a pós-modernidade, contribuindo, em larga medida, para a sua sedimentação. Para começar, defende que a filosofia tem a sua origem numa relação directa com as artes, e ganha consistência na produção de conceitos a partir do novo, e não a partir das teorias já estabelecidas. Dito de outro modo, a filosofia pertence ao impensado, que habita os intervalos das relações entre o pensável e a própria arte, e as artes funcionam rigorosamente como o ponto de fuga do aprisionamento do pensamento em si mesmo. Na hierarquia das artes, o cinema surge como a própria "imagem" do pensamento, ou seja, demonstra o próprio acto de pensar a partir de uma noção de "sentido", anterior e irredutível ao próprio estabelecimento das gramáticas, dos códigos e das linguagens. Esta "lógica do sentido", remissível a uma "lógica da sensação", centrada numa noção complexa de "acontecimento", permite ultrapassar a cristalização do próprio significado das coisas em verdades ou proposições. A arte será, assim, aquilo que no seu "devir" antecede as próprias formas, aí se podendo captar as forças, a potência e o material inteligível que concitam e produzem os próprios conceitos de "eu" e de "nós", os quais são o resultado póstumo desse estado pré-subjectivo e "pré-linguístico".
   Neste contexto, a arte e o pensamento são essencialmente do domínio experimental, e não do domínio do juízo e das suas condições transcendentais, superando Deleuze as velhas máximas de que a arte é, na sua essência. comunicação, ou narrativa, mais ou menos determinadas historicamente. Na sua opinião, só a partir dessa condição experimental é que a arte pode gerar algo de novo, aí residindo a sua própria validação, isto é,  o que pode ser dito e visto na arte é uma produção do seu próprio processo, seja no que diz respeito à possibilidade múltipla e "rizomática" de significados, seja no que concerne à própria "produção" do sujeito.
   O conceito de "rizoma", aplicado a toda a realidade, implica a noção de rede, ou seja, um conjunto de linhas que permitem permanentes ligações entre os vários elementos, cuja interpretação, produzida a partir desse organismo, liberto de hierarquias, acaba por criar e reconfigurar permanentemente a realidade.
   Em colaboração com Guattari, Deleuze concebe ainda o capitalismo como um sistema esquizofrénico, cuja noção de indivíduo acabara por subalternizar todas as outras; deste modo, o indivíduo já não é concebido como um ponto referencial e hierarquizador de real, mas como uma máquina de desejo que luta pela sua total afirmação contra todas as imposições sociais e políticas. Este contributo pesará na problematização das questões relativas ao "género", enquanto construção cultural da própria identidade do indivíduo, por oposição à determinação natural do conceito de sexo, assim como na crítica a qualquer noção hegemónica de cultura.
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Pereira, José Carlos. O Valor da Arte. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2016, pp 39-40.
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