quarta-feira, 31 de julho de 2019


Texto de Apresentação da Cintilações: Revista de Poesia, Ensaio e Crítica, Nº 3, 2019"


        Prof. Dr. Ernesto Rodrigues
 Fac. Letras/Univ. Clássica de Lisboa


   Cintilações da Sombra. Antologia Poética, coordenação de Victor Oliveira Mateus, foi lançada em 2013. O segundo volume sai no ano seguinte. O terceiro, melhorado na capa e no papel, em 2015, acrescentado de três ensaios. Perde a sombra, aumenta o número de páginas e a qualidade em 2016, voltando ao número um de Cintilações: Revista de Poesia e Ensaio. O número 2, 2017-2018, já tem um conselho editorial, e este, que agora apresentamos, em que Maria João Cabrita divide a coordenação, traz como subtítulo Revista de Poesia, Ensaio e Crítica, desdobramento ainda insuficiente para o acréscimo em 25 por cento da paginação.
   Percebe-se, já, uma comunidade de autores, tal a presença regular de alguns, entre revelados e confirmações; uma atenção crescente à variedade linguística, e, dada a primazia de falantes de português e castelhano, um forte domínio ibérico e latino-americano. Pela primeira vez, também, os poetas ocupam só 40 por cento do espaço.
   Face a transformações que uma tão breve estatística  mal explica, pergunto-me se não seria de alterar o critério de um poeta um poema, que João de Mancelos, Elena Liliana Popescu e Maria do Rosário Pedreira, por exemplo, já quebram. Seriam menos poetas e mais poemas de cada um. A recepção crítica assentaria em corpora mais consistentes, e na afirmação de nomes que mal iniciaram caminhada.
   Citarei, por ordem de entrada em cena, os que acompanho há muito e quantos só aqui (ignorância minha, decerto) me despertaram interesse em lê-los mais demoradamente: A. M. Pires Cabral, Amadeu Baptista, Ana Luísa Amaral, António Cabrita, António Carlos Cortez, António Ferra, Casimiro de Brito, João de Mancelos, João Ricardo Lopes, Leonor Castro, Maria Carpi, Maria do Rosário Pedreira, Maria Teresa Dias Furtado, Rita Taborda Duarte, Rosa Alice Branco, Sara F. Costa, Teresa Macedo.
   No apartado da poesia - mais uniforme que os outros -, encontro, já, um assunto vital, que, se não é novo na nossa lírica, há muito estava afastado, com esta dimensão, ao menos: trata-se de uma reflexão sobre a morte, em soluções e tons diversos. Assim, o despejo da vida, em que somos inquilinos, faz-se serenamente em Pires Cabral, numa toadilha de recorrências em Amélia Vieira, na brincadeira infantil da velha, em Ana Luísa Amaral, mais atormentado em Alice Machado, que partilha com Amadeu Baptista a figuração do louco, aqui, justiceiro.
   Mau grado a disforia, ainda, em Ana Maria Puga ou em André Domingues, e a bicicleta com "as cinzas/ Dos meus mortos" em Ana Peres de Sousa, percebe-se, aqui, um salto em frente, uma passagem para o outro lado, ou ultrapassagem, como no dilema de André Alves: "Como poderíamos ter livrarias nas esquinas,/ Se temos os pés descalços?" Cresce o futuro para estes poetas, como para "os netos órfãos" de Rita Taborda Duarte, que revê informação em "bocal de telefone - anguloso"?
   Dos mortos úteis, fecundos, mas também inúteis, fala António Cabrita, numa relação simbiótica com "os mortos que nos incluem na sua polpa", tal como a "gangrena interior" reabrindo, e a dor "familiar", por uma falha íntima, se anuncia fatal, em Cortez.
   Vejam-se outras explicitações de morte em António de Almeida Mattos, António Ferra ("quanto tempo falta para morrer."), no vocabulário expressionista de António Manuel Ribeiro e naturalista de Teresa Macedo, no reino das sombras de Casimiro de Brito, no balanço existencial de Cláudio Lima, na imagem da borboleta negra e da luz caindo, logo solidão sob névoa, em Conceição Brandão, à frente largamente recenseada; ainda, em Gabriela Rocha Martins e Rui Miguel Fragas; em Jorge Paulo, "a um passo de não ser", tal como Rui Rocha; na efémera rosa que nos sobrevive, secundando Maria Carpi, ou na ressurreição, segundo o evangelho de Orlando Barros. Abandono e perda resumem sem-abrigo português em Londres por Marília Miranda Lopes.
   Fragâncias de juventude são sorvidas em António Salvado, mas, a fechar o díptico, lá vem o"'fim' no branco a esmaecer". Em contraponto, "nunca nada termina", para Jorge Vicente. No meio, fica o amargo de tudo, anaforizado em Raquel Serejo Martins, ou a correria por tentar recuperar a vida a vida em Tiago Alves Costa; Ricardo Gil Soeiro inquieta-se na intérmina suspensão da partícula se.
   Quem foge a esta evidente unidade de sentido? Artur Ferreira Coimbra, Cecília Barreira, Fernando Paixão, Maria Augusta Silva, Nuno Brito, esperançosos. Noutra frente, encontramos Daniel Gonçalves e Rui Esteves, no entusiasmo criador, a que associo Isabel Cristina Mateus parafraseando Ramos Rosa - este, a par de Rilke, na arte poética de Maria Teresa Dias Furtado -, bem como a "ponta do lápis./ Onde começa/ a minha solidão", segundo Ema Alba Lobo, ou "o puzzle das sílabas", de Leonora Rosado, a conjunção verso-amor em Mbate Pedro, a que João Rasteiro soma "fértil solidão", o intrigante desnudamento de Leonor Castro e Maria José Quintela, o propósito criador de Adalberto Alves e Sara F. Costa, dizendo-nos que "Não podemos ser o mesmo".
   Contra este evidente "exercício de morrer", está o amor, confia Isabel Cristina Pires; mas também Jorge Fragoso e Pompeu Miguel Martins, ou amor-eternidade, em João Ricardo Lopes. Ir além de um "rascunho do amor" propõe-se João de Mancelos ecfrástico e em quatro haicais. Mas a morte pode fecundar a escrita de Lezama Lima, protagonista de Rosa Alice Branco. A léguas destas hipóteses de fusão, emergem violência doméstica de marginalidade, que são outro tipo de perdas, em Maria do Rosário Pedreira.
   Ora, contra o subtítulo, esta revista também contempla tradução, maioritariamente do coordenador. Além de Portugal, Brasil e Moçambique, cabem dez países: entre os escolhidos, que não conheço, saliento enredo íntimo em Alberto Fuentes, rítmica e léxico insólito em Aleyda Quevedo, Elena Popescu sobre criação literária e num último adeus, um exemplar Rubén Darío, Os materiais são parcos para outras conclusões, embora curioso de Mane Manushev e Pierina Marmo. As traduções fluem bem.
   A dezena de ensaios, pela variedade, interessará públicos díspares, já no confronto Pessoa/ Pla, já atrás das saias de Hilda Hilst, que me sugeriram comparação - trabalho que ofereço a estudiosos de género - com As Saias de Elvira Outros Ensaios (2006), de Eduardo Lourenço. Conhecia o texto sobre Teresa Veiga lido em encontro camiliano, com a qual viemos de comboio e boleámos até casa. Fico a conhecer, por Maria João Cabrita, Robert Nozick, na abrigada leitura do que é uma proposta de vida. Reconcilio-me com versos de Maria Gabriela Llansol e recordo um antigo colega da Faculdade, M. S. Lourenço: Pedro Marques Pinto é breve, e fez bem. É útil recordar António Telmo. Sério de divertido fecha Victor Oliveira Mateus, qual terapia a também usar nesta baixa existência, e mais na literária, mais baixa ainda.
    Fecha, não, porque sucedem outros apartados, que obrigarão a repensar futuro subtítulo, algo como 'revista de literatura e arte'. Temos, assim, crítica literária, prosa, ensaio gráfico. Mas, numa espécie de intermezzo, este discípulo dos estóicos que eu sou toma como bónus o regresso do coordenador sobre a velhice, matéria que o sistema escolar não deveria escamotear - nem a Segurança Social.
   Seguem três recensões, três contos acrescidos de uma memória juvenil de Maria Lucília Meleiro em tempos de Guerra Fria (ignorando que lingerie ocidental era muito apreciada além do Muro de Berlim...) e um poema em prosa. À sensibilidade contística de Ana Paula Costa responde o onírico de Carlos Nuno Granja e seu Ramires peculiar. Entre os artistas, conheço Emerenciano de jantar e exposição em Ovar, não os demais: talvez eles devessem intervalar as centenas de páginas e não quedar no fim.
   A propósito do chamado 'delírio das musas', acrescenta Victor Oliveira Mateus em "Um eu em bicos de pés": "Segundo Séneca, Aristóteles teria também dito que não existe grande engenho sem uma extrema insânia". Eu traduziria: "Impossível um grande génio sem um grão de loucura". Séneca, em De Tranquillitate Animi, atribui-lhe a expressão, de facto, a partir do apócrifo aristotélico Problemas, em que génio é teorizado como melancolia. Não quero, agora, acusar ninguém de genial; mas, face a esta regularidade de seis anos, na constância da Editora Labirinto e do Núcleo de Artes e Letras de Fafe, e às centenas de poemas e prosas em gradual internacionalização, não vejo outro caso assim no universo literário português. Ou seja, um grão de loucura mora aqui.
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Lisboa (Livraria Férin), 13 de julho de 2019.
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domingo, 14 de julho de 2019


                   Souvenir


Todo o tempo, vamos embora
e, no entanto, não nos perdemos
de vista em instante algum
Tentamos um novo enredo,
mas a memória é outro corpo
que arrastamos e decai
com os nossos, permanece,
 cicatriz, nome que nunca cessa

E se nos víssemos entre os vivos,
outra vez na multidão? A imagem
fixa de susto e nos perguntaríamos:
e agora, quem some? Nenhum
de nós: somos a provação,
o cravo nas costas, as vértebras
e suas cracas para sempre,
um aleijão, a fisgada em cada gesto

Não nos esquecemos, sim,
nos esconderíamos com a mentira,
não nos lembraremos, não
nos lembramos de esquecer,
tornaremos os rostos à parede
mais vendo assim, transe,
mais sabendo que somos nada,
aprisionados nos nossos estômagos

Sim, a memória é uma unha
e ainda que cortemos o dedos
que a leva, e mesmo amputados,
leríamos a mutilação, a dor
fantasma, o concreto, toxina,
o plástico nas narinas,
o afogamento, a despeito
das transparências

E nos olharíamos, os mesmos,
quase os mesmos, despojos
de dias gastos.
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 Bresciani, Alberto. Fundamentos de ventilação e apneia. São Paulo: Editora Patuá, 2019, pp 108-109.
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sexta-feira, 12 de julho de 2019


               Trinta e um


O tempo não nos fez
mais sábios, o tempo
nos cega e engana

Nossos planos, essas
metas de fim de ano
cairão como fortalezas

Melhor nos serve
a memória dos peixes
- breve, breve, breve

Escrever nossos nomes
no papel em branco,
a certeza

de não nos ferirmos,
apagar quedas,
estragos, trancos

Provemos as cerejas
que sobraram sobre a mesa
São doces, macias.
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  Bresciani, Alberto. Fundamentos de ventilação e apneia. São Paulo: Editora Patuá, 2019, pp 55-56.
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quinta-feira, 11 de julho de 2019


                         Atenas

Sigue tejiendo, amor, y destejiendo
jerseys y leguas para mi derrota,
bufandas para el viento que me lleva,
el frío de mi fuga
y el invierno que soy. Sigue tejiendo.

Sigue diciendo no
al desaliento y a tus pretendientes.
Y no les digas no, diles mañana,
y mañana también diles mañana.
Lo mismo que yo a ti. Hasta que regrese.

Cuando cansado ya de derroteros,
harto ya de perderme y demorarme
en regazos de magas o en riesgos de sirenas,
regrese a ti, y no sepas
qué hacer con el quehacer de tanta espera
como ahora no sé qué hacer conmigo.

Me he convertido en nadie.

Tendré que regresar a tu regazo,
apoyar mi cabeza donde ahora está el ovillo
que guía mi retorno.

Y cuando llegue a ti ya no sabrás quién soy.
Cuando te abrace abrazarás el aire.
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 Piqueras, Juan Vicente. Atenas. Madrid: Visor Libros, 2013, p 56.
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quarta-feira, 10 de julho de 2019


                          O Labirinto


Numa mão o fio e na outra a espada,
o coração um nó, os passos sigilosos,
entro no labirinto assustado e feliz
como quem decidiu afrontar o seu destino.

Mas no labirinto apenas escuto o silêncio.
Não há mugidos, nem vozes, nem passos que não sejam
os meus, nem ruídos para para além da minha respiração.

Começo a suspeitar que talvez não haja ninguém
e que o terrível monstro
seja apenas uma invenção do medo dos homens,
do seu obscuro desejo de desaparecer.

Quando chego ao espaço central vejo nele um poço.
"Como um umbigo" - penso, enquanto me aproximo dele.

Vejo o meu reflexo na água estagnada e compreendo
que o minotauro está dentro de mim,
que a luta havia começado,
que acabará comigo
se antes não chegar o fim a resgatar-me.
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 Piqueras, Juan Vicente. Atenas. Madrid: Visor Libros, 2013, p 25 (Tradução de Victor Oliveira Mateus).
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segunda-feira, 8 de julho de 2019



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Acabou de sair a Cintilações: Revista de Poesia, Ensaio e Crítica, Nº 3, 2019. A sua primeira apresentação ocorreu no passado dia 5 na Feira do Livro de Braga e no próximo dia 13 será igualmente apresentada em Lisboa, na Livraria Ferin, pelo Prof. Ernesto Rodrigues da Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Esta Revista sofreu as seguintes alterações:
- A Coordenação passei a partilhá-la com a Profª Maria João Cabrita da Universidade da Beira Interior.
- O Conselho Editorial foi aumentado e passou a contar também com os seguintes autores e/ou académicos: o romancista e ensaísta Miguel Real, o poeta e Prof. da Univ. de Salamanca Alfredo Pérez Alencart, o Prof. da Univ. Católica Cândido Oliveira Martins, a Poeta e Profª da Univ. Clássica Ana Mafalda Leite e o poeta espanhol (aqui neste vídeo) Alejandro Simón Partal. Para todos o meu imenso obrigado por terem aceitado o meu convite/ pedido para colaborarem nesta tarefa que é manter de pé, nos dias de hoje, uma Revista cultural desta qualidade. Bem-hajam!
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quarta-feira, 3 de julho de 2019


                                              UM EU EM BICOS DE PÉS 

                                                  Victor Oliveira Mateus 


(…) Escrever 
uma obra que nos sobreviva 
é um exercício inútil. 
No fim, desaparece tudo. 

José Rui Teixeira, Ainda 


   Quando Platão defende a expulsão dos poetas da cidade, toma a medida correta pelos motivos errados. Ou melhor: pelos motivos incompletos. Convém não esquecer que Platão não visa todos os poetas, mas tão-só os líricos, já que aos epopeicos é concedida até alguma utilidade, sobretudo na instrução dos guerreiros. Mas Platão não visa só os poetas líricos, também aos comediógrafos e aos tragediógrafos é indicada a porta de saída da pólis. A falha essencial destes três tipos de autores é, para Platão, essa impossibilidade estrutural de tais artes em abandonar o sensível, tal como ele havia defendido em várias obras, sobretudo no Fedro e no Fédon. Esta impossibilidade de ascensão – ou de conversão, como diria séculos mais tarde Simone Weil ao falar de Platão! – reduz esses autores ao papel social de meras excrescências, de efeitos de uma humanidade espúria que urge eliminar. Assim, uma sociedade justa não se pode dar ao luxo de conservar no seu seio defensores de imitações e de negaças, por conseguinte, para Platão a procura da justiça social corre a par com uma rígida hierarquização da sociedade e com um espartilhar cuja eficácia não poderá perturbar o culto da racionalidade, aliás, não é por acaso que Karl Popper refere o filósofo grego como um dos pais das sociedades fechadas, esses modelos de castas onde as chefias não são questionadas. Aos poetas líricos e aos tragediógrafos não é perdoado esse exacerbar das sensações e das emoções, escolhos no aperfeiçoamento moral e social segundo o modelo platónico, e aos comediógrafos, para além dos motivos anteriores, não é igualmente desculpado esse crime de lesa-justiça cometido por Aristófanes em As Nuvens, mas, e acima de tudo, o feroz achincalhamento dos deuses que o mesmo autor ousou em As Aves, indesculpabilidade extensiva depois, por todos os platónicos, à Comédia Nova, agora pelo crime de lesa-Pátria na ridicularização da Hélade, sobretudo na pessoa desse degenerado Menandro, que ousou mesmo escrever, para riso das massas, que os aqueus quando regressaram de Tróia traziam o …. mais aberto do que a cidade que haviam acabado de conquistar. Mas Platão se dá ênfase ao vilipendiar do fazer poético é, não só pelos motivos já referidos, mas também pelo facto dessa techne irromper geminada com o demencial: na Apologia os poetas aparecem igualados aos profetas e a todos aqueles que executam um dado fazer, cujos sentido e fundamento são incapazes de explicar. Este elo entre o fazer poético e a loucura continuou séculos adentro até a atualidade, para gáudio da massa e auto-embevecimento de alguns poetas, isto mesmo numa época em que grande parte de psiquiatras, psicólogos clínicos e psicanalistas se recusam a usar o conceito, a não ser que lhes seja explicado o que é entendido por tal. Convém, portanto, frisar que a associação: perícia na manipulação das imagens/ demencial tem raízes profundas na cultura ocidental: as primeiras formulações de psicopatologias em santos, profetas, filósofos, poetas, etc. podem já ser encontradas em Eurípides e Demócrito, e o próprio Platão, no Fedro, acentua que quem quiser aprender a arte poética terá de entrar pelo delírio das musas, esta tese vigorará ao longo de séculos: segundo Séneca, Aristóteles teria também dito que não existe grande engenho sem uma extrema insânia e, já no séc. XVII, Pascal continua a ideia, afirmando que a agudeza do espírito tem extrema vizinhança com a loucura, enfim, são inúmeros os exemplos até chegarmos à célebre tese de Cesare Lombroso, que, numa obra de 1863, acaba defendendo que não há como uma boa psicose para favorecer a produção artística; a polémica de Lombroso com o seu opositor, o psiquiatra austríaco Max Nordau, decorreu até 1910, mas, e para o que nos interessa aqui, que é a desconfiança de Platão relativamente aos poetas, que, na sua exuberância, visavam exclusivamente o dizer das imagens, do inautêntico, e através dessa arte, ocupar o centro, pôr-se em bicos de pés, desinteressados da definição dos conceitos e, consequentemente, da procura da Verdade, para tudo isso haveria de contar com a firme oposição de Platão, pois essa ideia de que filhos de campónios, ou de outros estatutos sociais menores, pudessem alguma vez ocupar o centro era absolutamente intolerável para Platão, aristocrata de sangue por parte da mãe, que descendia dos antigos reis de Atenas; essa obsessão do Eu-poético (e do próprio poeta) pelo centro, que tem na antiguidade em Safo um dos seus pontos altos, e que a filosofia e a poesia orientais sempre ignoraram, não se desvaneceu após o ultra-romantismo, antes pelo contrário, desembocou depois, acompanhando o desenvolvimento informático e cibernético, num paroxismo auto-referencial de grande parte dos poetas: o eu-luminoso, o eu-espiando os seus pares, o eu-lupino ávido de poder e de esplendor, etc. aliás, seria interessante até comparar este turbilhão com algumas perturbações da personalidade devidamente estudadas e caraterizadas (1) . A esta avidez que o Eu tem, em muito do fazer poético, pelo centro, nem sequer escapou a tão crítica poesia de escárnio e maldizer, veja-se, por exemplo, a produção de Pero Garcia Burgalês. Se, como dizia Fichte, a filosofia que se tem depende da pessoa que se é, então, o mesmo poder-se-á dizer da relação poeta/poesia: a personalidade do ser humano não pode ser comparada a essa cebola tão bem cantada por grandes poetas como Miguel Hernandez e Rosa Chacel; a personalidade não é uma multiplicidade de películas reluzentes, que, camada após camada, envolvem um poço vazio; a personalidade tem um núcleo, que, na sua imutabilidade (2) , não deixa de irromper na poesia que se faz, mesmo quando se opta pelo tão mitificado fingimento. E foi isso que Platão percebeu: os poetas não navegavam pelas aparências pelo simples prazer de navegar, eles faziam-no porque nas suas orquestradas poses de exibicionismo e de pretenso demencial gostavam se pôr em bicos de pés – enquanto pessoas e enquanto eu-no-texto – e uma sociedade que visasse a justiça, o belo e o bem teria, obviamente, de proceder à exclusão desses prestidigitadores de imagens. 
    É sabido que Platão tolerava a presença do singular, mas apenas em três situações bem definidas: como elemento de utilidade na exercitação de um raciocínio que visará a eficácia na apreensão do universal, tal como aparece em O Sofista; como elemento detentor das definições supremas e, por conseguinte, como corolário do social, que, enquanto filósofo-rei, tem em si a justificação para o governo da pólis e, finalmente, como inquiridor esclarecido na persecução dos diálogos platónicos tal como nos explicita Victor Goldschmidt (3) , já que, para este filósofo, é ao Sócrates platónico, enquanto indivíduo, que compete a determinação do saber do interlocutor para que se possa chegar a um diálogo acabado ou a outro incompleto. Para além destas situações, a sociedade é um todo estruturado e hierarquizado, cujo centro é ela no seu todo ou aquele que necessariamente dela emana e é, portanto, um território de universalidade, onde jamais caberiam os fascinados pelo seu brilho pessoal, fatores de perturbação da ordem social, do aperfeiçoamento moral e da procura do bem; extrapolando agora: poder-se-á dizer que para se chegar a uma sociedade organizada, perfeita e, até mesmo, poética no seu todo, urgia a expulsão dos poetas, quais sombras espaventosas refletidas nas paredes de uma caverna. 
   Se aos poetas não deve ser concedido estatuto de cidadania – com exceção dos epopeicos, que, contudo, não passam de meros utensílios em processos de aprendizagem, logo, sem qualquer hipótese de se meterem em bicos de pés -, então, pergunta-se, qual o tipo de poesia que poderia ser tolerada, ou mesmo incentivada no seio da sociedade? Resposta: toda aquela cujo vetor apontasse para o apagamento do Eu, da singularidade, para a ocultação deliberada do poeta enquanto criador e do eu-poético que poreja nos seus textos. Numa visão filosófica e política do tipo que Platão intuiu, com os poetas todo o cuidado seria pouco! No entanto, se lermos com minúcia a escrita de Hildegarda de Bingen, a de Herrad von Landsberg ou a de S. João de Cruz, ver-se-á que uma poesia onde a conceção de autoria implodisse, paralelamente ao apagamento de um egotismo obsessivo que perpassa nos poemas, numa situação dessas essa poesia seria perfeitamente aceitável, e até mesmo necessária, para uma sociedade que vise o seu aperfeiçoamento moral, social e político, até lá, todo o poeta, todo o Eu, que visse sistematicamente o outro, nunca como fim, mas como meio para se pôr em bicos de pés, deverá ser expulso da pólis. Apenas um último exemplo (outros semelhantes poderão ser encontrados nas culturas do oriente!) para ilustrar esta posição: se lermos um dos mais belos poemas da Idade Média, O canto do irmão sol (4)  perceberemos o que é uma poesia do despojamento, da fusão e identificação com o Todo, com o Enigma, do deliberado apagamento do Eu, e pode ser de tal modo abrangente e monumental esse despojamento, que o eminente biógrafo e historiador que é André Vauchez, quando pretendeu escrever a sua enorme biografia de Francisco de Assis (5)  encontrou apenas duas fontes absolutamente credíveis (O Testamento e a Regra), para o resto o historiador em causa teve de recorrer a tudo o que é documento apócrifo e a um estudo minucioso da época nas suas múltiplas vertentes, tal havia sido a vontade e a ação de um humano, que, de passagem por aqui, apenas da sua viagem fez a sua arte, sem se pôr em bicos de pés, pelo que jamais poderia – nem deveria – ser expulso de cidade alguma, como, aliás, não o foi. No entanto, e à guisa de conclusão, acrescentaremos tão-só que esta escrita do despojamento não é passível de ser encontrada apenas no território místico-religioso, podemos detetá-la em outros horizontes teóricos completamente distintos como, por exemplo, em Cioran (6) . 
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NOTAS 

(1). Cf. Richad Sennett, A corrosão do carácter, Terramar, 2007 e Julia Kristeva, Les nouvelles maladies de l’âme, Fayard, 1993.
( 2). Posição que não contradita as teses da psiquiatria e da psicanálise da Escola Vienense de Viktor E. Frankl. Cf. também Sem consciência, 0 mundo perturbador dos psicopatas que vivem entre nós, Robert D. Hare, Edª Artmed, 2012, bem como Le harcèlement moral, la violence perverse au quotidien, de Marie-France Hirigoyen, Édiitions La Découverte, 1998. 
(3). Cf. Victor Goldschmidt, Les dialogues de Platon, P.U.F., 1971. 
(4). Cf. Oeuvres, Saint François D’Assise, Albin Michel, 2006, pp 255-256. 
(5). Cf. François D’Assise, entre histoire et mémoire, Fayard, 2009. 
(6). Cioran, Cahiers, 1957-1972, Gallimard, 1997, p 87, p 94, p 480, p 690. Um exemplo: “L’idée même que je puisse viser à la gloire m’humilie, et elle me ruine à mês propres yeux.” Cioran, op. cit. p 68. 
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Mateus, Victor Oliveira. Cintilações: Revista de Poesia, Ensaio e Critica, Nº 3, 2019. Fafe: Editora Labirinto, pp 169-175.
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         A cierta edad, el gris es un color alegre


Aprecia cuanto tienes.
No te importe si llueve o hace sol,
mientras puedas contarlo.

Eres el dueño de un tesoro
que sólo a ti te pertenece y nadie
puede menoscabar.

Intenta ser feliz
gozando cuanto efímero subyace en lo perenne,
disfrutando lo eterno en lo fugaz.

Es la sabiduría de la vida:
a veces un segundo contiene un año entero;
se disipa el perfume, permanece la rosa.

Si vives lo bastante,
verás que con la edad se vuelven relativos
las sombras y los gozos:

que en olvido se alberga la memoria
y la memoria olvida
hasta que todo es nada más que eco.

Y, sobre todo, ten presente.
(El futuro es silencio,
el momento que vives y se apaga

bien puede ser el último, por eso
cuida de tu tesoro).
Sólo de ti depende

la alegría del último momento.
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 Manilla, Antonio. Suavemente ribera. Madrid: Visor Libros, 2019, pp 87-88.
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terça-feira, 2 de julho de 2019




                             Ananke


Agora que deixa o crepúsculo na folhagem
a última luz do dia, enquanto tudo se desvanece
e a noite se acende, penso no quanto
quis para a minha vida e nem sequer intentei,
no que nunca imaginei e, no entanto, fui:

nas coisas perdidas e encontradas
sem que se saiba como,
destroços que o mar atira para uma praia
e o infortúnio de uns passos na areia,
 que apagando as ondas, nos fazem achar,

tesouros que na bruma do esquecimento
para sempre se perdem
alimentando um halo de lendas
que nos salva do frio, inexplicavelmente,
quando chega o inverno.

Agora que um canto de nostalgia se levanta
de todo o vivido e do por viver
e o melancólico ferreiro palpita
com um ritmo frenético,
penso, por um instante, no destino.
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 Manilla, Antonio. Suavemente ribera. Madrid: Visor Libros, 2019, p 29 (Tradução de Victor Oliveira Mateus).

Nota: Ananke, ou Ananque, era na Mitologia Grega a Deusa da inevitabilidade, a mãe das Moiras, a personificação do Destino.
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                           A Filha de David


Mãe, por onde passei, apesar de limpar
sujei. Cultivei flores, mas foram mais as que
arranquei do que as outras, as que reguei
no horto. Não matei animais
mas a guilhotina do talho trabalhou
para mim, noite e dia. Assim, se sobrevivi
foi porque alguém morreu para meu bem.

Juro por Deus que desejei que fosse perfumada
a superfície onde pousei os lábios, e no entanto
dela me desviaram pensamentos outros
que tomei por sábios.

Quis olhar para as alturas e deixei-me curvar
na direcção do chão, lá onde o meu pé direito
ganhou, sob a tira do sapato, a mancha de uma
roedura - E conclusão.

Daqui irei e pouco mais farei do que deixar
uns escritos sobre o mundo onde eu queria só erguer
e no entanto, como em tudo, fiz parte
da ruína que eu não queria.

Esposa de David, a quem a minha mentira não consente
sobre tudo o que não nomeei, os teus conselhos
de fulgor e perfeição, assim serão.
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  Jorge, Lídia. O Livro das Tréguas. Alfragide. Publicações Dom Quixote, 2019, pp 90-91.
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segunda-feira, 1 de julho de 2019



                             Minha despesa


Pesado  é o imposto sobre os meus passos
e dizeres - O beleguim que mo cobra, dia a dia
está sentado à porta anunciando essa pequena morte
por despesa.

Antes regressar à mesa onde estudava os livros
que já tinham sido escritos, humanística biblioteca
tão vasta quanto estrelas, férias cantantes
sem outro intento que não fosse contar as linhas
uma a uma, e imaginar batalhas onde homens
jovens encontravam a traição da História
por mortalha.

Pensando bem, a mão me trai o espírito, detestado beleguim
vem, regista a dívida, cobra o que entenderes por este
meu ofício.
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  Jorge, Lídia. O Livro das Tréguas. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2019, p 65.
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O Diário digital "Salamanca RTV - AL DIA. es " noticia hoje as próximas apresentações (em Braga e em Lisboa) da "Cintilações: Revista de Poesia, Ensaio e Crítica, Nº 3, 2019" coordenada por Victor Oliveira Mateus e Maria João Cabrita, e publicada pela Editora Labirinto.  
Aqui:
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