Texto de Apresentação da Cintilações: Revista de Poesia, Ensaio e Crítica, Nº 3, 2019"
Prof. Dr. Ernesto Rodrigues
Fac. Letras/Univ. Clássica de Lisboa
Cintilações da Sombra. Antologia Poética, coordenação de Victor Oliveira Mateus, foi lançada em 2013. O segundo volume sai no ano seguinte. O terceiro, melhorado na capa e no papel, em 2015, acrescentado de três ensaios. Perde a sombra, aumenta o número de páginas e a qualidade em 2016, voltando ao número um de Cintilações: Revista de Poesia e Ensaio. O número 2, 2017-2018, já tem um conselho editorial, e este, que agora apresentamos, em que Maria João Cabrita divide a coordenação, traz como subtítulo Revista de Poesia, Ensaio e Crítica, desdobramento ainda insuficiente para o acréscimo em 25 por cento da paginação.
Percebe-se, já, uma comunidade de autores, tal a presença regular de alguns, entre revelados e confirmações; uma atenção crescente à variedade linguística, e, dada a primazia de falantes de português e castelhano, um forte domínio ibérico e latino-americano. Pela primeira vez, também, os poetas ocupam só 40 por cento do espaço.
Face a transformações que uma tão breve estatística mal explica, pergunto-me se não seria de alterar o critério de um poeta um poema, que João de Mancelos, Elena Liliana Popescu e Maria do Rosário Pedreira, por exemplo, já quebram. Seriam menos poetas e mais poemas de cada um. A recepção crítica assentaria em corpora mais consistentes, e na afirmação de nomes que mal iniciaram caminhada.
Citarei, por ordem de entrada em cena, os que acompanho há muito e quantos só aqui (ignorância minha, decerto) me despertaram interesse em lê-los mais demoradamente: A. M. Pires Cabral, Amadeu Baptista, Ana Luísa Amaral, António Cabrita, António Carlos Cortez, António Ferra, Casimiro de Brito, João de Mancelos, João Ricardo Lopes, Leonor Castro, Maria Carpi, Maria do Rosário Pedreira, Maria Teresa Dias Furtado, Rita Taborda Duarte, Rosa Alice Branco, Sara F. Costa, Teresa Macedo.
No apartado da poesia - mais uniforme que os outros -, encontro, já, um assunto vital, que, se não é novo na nossa lírica, há muito estava afastado, com esta dimensão, ao menos: trata-se de uma reflexão sobre a morte, em soluções e tons diversos. Assim, o despejo da vida, em que somos inquilinos, faz-se serenamente em Pires Cabral, numa toadilha de recorrências em Amélia Vieira, na brincadeira infantil da velha, em Ana Luísa Amaral, mais atormentado em Alice Machado, que partilha com Amadeu Baptista a figuração do louco, aqui, justiceiro.
Mau grado a disforia, ainda, em Ana Maria Puga ou em André Domingues, e a bicicleta com "as cinzas/ Dos meus mortos" em Ana Peres de Sousa, percebe-se, aqui, um salto em frente, uma passagem para o outro lado, ou ultrapassagem, como no dilema de André Alves: "Como poderíamos ter livrarias nas esquinas,/ Se temos os pés descalços?" Cresce o futuro para estes poetas, como para "os netos órfãos" de Rita Taborda Duarte, que revê informação em "bocal de telefone - anguloso"?
Dos mortos úteis, fecundos, mas também inúteis, fala António Cabrita, numa relação simbiótica com "os mortos que nos incluem na sua polpa", tal como a "gangrena interior" reabrindo, e a dor "familiar", por uma falha íntima, se anuncia fatal, em Cortez.
Vejam-se outras explicitações de morte em António de Almeida Mattos, António Ferra ("quanto tempo falta para morrer."), no vocabulário expressionista de António Manuel Ribeiro e naturalista de Teresa Macedo, no reino das sombras de Casimiro de Brito, no balanço existencial de Cláudio Lima, na imagem da borboleta negra e da luz caindo, logo solidão sob névoa, em Conceição Brandão, à frente largamente recenseada; ainda, em Gabriela Rocha Martins e Rui Miguel Fragas; em Jorge Paulo, "a um passo de não ser", tal como Rui Rocha; na efémera rosa que nos sobrevive, secundando Maria Carpi, ou na ressurreição, segundo o evangelho de Orlando Barros. Abandono e perda resumem sem-abrigo português em Londres por Marília Miranda Lopes.
Fragâncias de juventude são sorvidas em António Salvado, mas, a fechar o díptico, lá vem o"'fim' no branco a esmaecer". Em contraponto, "nunca nada termina", para Jorge Vicente. No meio, fica o amargo de tudo, anaforizado em Raquel Serejo Martins, ou a correria por tentar recuperar a vida a vida em Tiago Alves Costa; Ricardo Gil Soeiro inquieta-se na intérmina suspensão da partícula se.
Quem foge a esta evidente unidade de sentido? Artur Ferreira Coimbra, Cecília Barreira, Fernando Paixão, Maria Augusta Silva, Nuno Brito, esperançosos. Noutra frente, encontramos Daniel Gonçalves e Rui Esteves, no entusiasmo criador, a que associo Isabel Cristina Mateus parafraseando Ramos Rosa - este, a par de Rilke, na arte poética de Maria Teresa Dias Furtado -, bem como a "ponta do lápis./ Onde começa/ a minha solidão", segundo Ema Alba Lobo, ou "o puzzle das sílabas", de Leonora Rosado, a conjunção verso-amor em Mbate Pedro, a que João Rasteiro soma "fértil solidão", o intrigante desnudamento de Leonor Castro e Maria José Quintela, o propósito criador de Adalberto Alves e Sara F. Costa, dizendo-nos que "Não podemos ser o mesmo".
Contra este evidente "exercício de morrer", está o amor, confia Isabel Cristina Pires; mas também Jorge Fragoso e Pompeu Miguel Martins, ou amor-eternidade, em João Ricardo Lopes. Ir além de um "rascunho do amor" propõe-se João de Mancelos ecfrástico e em quatro haicais. Mas a morte pode fecundar a escrita de Lezama Lima, protagonista de Rosa Alice Branco. A léguas destas hipóteses de fusão, emergem violência doméstica de marginalidade, que são outro tipo de perdas, em Maria do Rosário Pedreira.
Ora, contra o subtítulo, esta revista também contempla tradução, maioritariamente do coordenador. Além de Portugal, Brasil e Moçambique, cabem dez países: entre os escolhidos, que não conheço, saliento enredo íntimo em Alberto Fuentes, rítmica e léxico insólito em Aleyda Quevedo, Elena Popescu sobre criação literária e num último adeus, um exemplar Rubén Darío, Os materiais são parcos para outras conclusões, embora curioso de Mane Manushev e Pierina Marmo. As traduções fluem bem.
A dezena de ensaios, pela variedade, interessará públicos díspares, já no confronto Pessoa/ Pla, já atrás das saias de Hilda Hilst, que me sugeriram comparação - trabalho que ofereço a estudiosos de género - com As Saias de Elvira Outros Ensaios (2006), de Eduardo Lourenço. Conhecia o texto sobre Teresa Veiga lido em encontro camiliano, com a qual viemos de comboio e boleámos até casa. Fico a conhecer, por Maria João Cabrita, Robert Nozick, na abrigada leitura do que é uma proposta de vida. Reconcilio-me com versos de Maria Gabriela Llansol e recordo um antigo colega da Faculdade, M. S. Lourenço: Pedro Marques Pinto é breve, e fez bem. É útil recordar António Telmo. Sério de divertido fecha Victor Oliveira Mateus, qual terapia a também usar nesta baixa existência, e mais na literária, mais baixa ainda.
Fecha, não, porque sucedem outros apartados, que obrigarão a repensar futuro subtítulo, algo como 'revista de literatura e arte'. Temos, assim, crítica literária, prosa, ensaio gráfico. Mas, numa espécie de intermezzo, este discípulo dos estóicos que eu sou toma como bónus o regresso do coordenador sobre a velhice, matéria que o sistema escolar não deveria escamotear - nem a Segurança Social.
Seguem três recensões, três contos acrescidos de uma memória juvenil de Maria Lucília Meleiro em tempos de Guerra Fria (ignorando que lingerie ocidental era muito apreciada além do Muro de Berlim...) e um poema em prosa. À sensibilidade contística de Ana Paula Costa responde o onírico de Carlos Nuno Granja e seu Ramires peculiar. Entre os artistas, conheço Emerenciano de jantar e exposição em Ovar, não os demais: talvez eles devessem intervalar as centenas de páginas e não quedar no fim.
A propósito do chamado 'delírio das musas', acrescenta Victor Oliveira Mateus em "Um eu em bicos de pés": "Segundo Séneca, Aristóteles teria também dito que não existe grande engenho sem uma extrema insânia". Eu traduziria: "Impossível um grande génio sem um grão de loucura". Séneca, em De Tranquillitate Animi, atribui-lhe a expressão, de facto, a partir do apócrifo aristotélico Problemas, em que génio é teorizado como melancolia. Não quero, agora, acusar ninguém de genial; mas, face a esta regularidade de seis anos, na constância da Editora Labirinto e do Núcleo de Artes e Letras de Fafe, e às centenas de poemas e prosas em gradual internacionalização, não vejo outro caso assim no universo literário português. Ou seja, um grão de loucura mora aqui.
.
Lisboa (Livraria Férin), 13 de julho de 2019.
.
Lisboa (Livraria Férin), 13 de julho de 2019.
.
.
.