Inferno
Porque te afastaste?
Saí viva do fogo;
como é isso possível?
Quanto se perdeu?
Nada se perdeu: tudo foi
destruído. A destruição
é o resultado da acção.
O fogo era real?
Lembro-me de entrar de novo na casa há vinte anos,
tentando salvar o que podíamos.
Louças, e assim. O cheiro do fogo
em tudo.
No meu sonho, ergui uma pira funerária.
Para mim, tu entendes.
Pensei que já tinha sofrido que chegasse.
Pensei que era o fim do meu corpo: o fogo
parecia-me o fim perfeito para a fome;
eram a mesma coisa.
E mesmo assim não morreste?
Era um sonho; pensei que voltava para casa.
Lembro-me de dizer a mim própria
que isso não funcionava; lembro-me de pensar
que a minha alma era por de mais obstinada para morrer.
Eu pensava que alma era o mesmo que consciência -
se calhar toda a gente pensa assim.
Porque te afastaste?
Acordei num outro mundo.
Tão simples quanto isto.
Porque te afastaste?
O mundo mudou. Saí do fogo
e entrei num mundo novo - talvez
o inferno, tanto quanto sei.
Não o fim da carência, mas carência
elevada ao máximo poder..
Louise Gluck. Vita Nova. Lisboa: Relógio D' Água Editores, 2021, pp 93-95 (Tradução de Ana Luísa Amaral).
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