Lamego, 22 de Março de 1940 - Não há nada que resista ao tempo. Como uma grande duna que se vai formando grão a grão, o esquecimento cobre tudo.
Ainda há dias pensava nisto a propósito de não sei que afecto. Nisto de duas pessoas julgarem que se amam tresloucadamente, de não terem mùtuamente no corpo e no pensamento senão a imagem do outro, e daí a meia dúzia de anos não se lembrarem sequer de que tal amor existiu, cruzarem-se numa rua sem qualquer estremecimento, como dois desconhecidos.
Esta certeza, hoje então, radicou-se ainda mais em mim.
Fui ver a casa onde passei um dos anos cruciais da minha vida de menino. E nem as portas, nem as janelas, nem o panorama em frente me disseram nada. Tinha cá dentro, é certo, uma nebulosa sentimental de tudo aquilo. Mas o concreto, o real, o número de degraus da escada, a cara da senhoria, a significação terrena de tudo aquilo, desaparecera.
Miguel Torga. Diário I. Coimbra: 7ª Edição, pp 135-136.
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