Face a outro ser humano os nossos comportamentos definem-se.
Gerião estava surpreendido consigo mesmo. Agora via Héracles quase todos os dias.
O instante natural
formando-se entre os dois drenou cada gota das paredes da sua vida
deixando para trás apenas fantasmas
farfalhando como um velho mapa. Não tinha nada a dizer a ninguém.
Sentia-se solto e brilhante.
Ardia na presença da mãe.
Já quase nem te conheço, disse ela encostada à porta do quarto dele.
(...)
O amor não
me tornou gentil ou bondoso, pensou Gerião enquanto ele e a sua mãe se olhavam
a partir de cantos opostos da luz.
Ele enchia os bolsos com dinheiro, chaves, rolos. Ela bateu levemente com o cigarro nas costas da mão.
(...)
A que horas voltas para casa? Perguntou ela. Não muito tarde, respondeu.
Uma pura e ousada vontade de desaparecer invadiu-o.
Diz-me Gerião o que é que tu gostas neste rapaz nesse Héracles podes dizer-me?
Se te posso dizer, pensou Gerião.
Mil coisas que não podia contar passaram-lhe pela cabeça. Héracles sabe muito sobre arte. Temos boas conversas.
Ela olhava não para ele mas através dele à medida que colocava o cigarro por acender no bolso da frente da camisa..
"Como é que a distância se mostra?" é uma simples pergunta directa. Estende-se a partir de um interior sem espaço até ao limite
do que pode ser amado. Depende da luz. Acendo isso? disse ele tirando
a caixa de fósforos
dos jeans enquanto caminhava até ela. Não querido. Ela afastava-se.
Devia mesmo deixar isto.
Anne Carson. Autobiografia do vermelho. S/c.: não (edições), 2020, pp 48-49 (Tradução de Ricardo Marques e João Concha).
.
.
.