segunda-feira, 27 de dezembro de 2021


                 A casa iluminada


Olhai honestamente para o vosso passado
escondido da rua pelos arbustos
oferecendo-se aos pedaços
naquilo que o rasurado quis extirpar
nos trechos sem relação que vos assaltam no sono
no desabamento, na estranheza
outro nome possível se transcreve


Considerai as vossas memórias pré-históricas
as primeiras declarações de amor pronunciadas
com lábios de sangue
a inervação magnética do vosso coração
dentro da caixa anatómica
dentro de uma caverna
na jangada que vos leva


Aprendei a observar com delicadeza
a terra inóspita antes de passar
a face molhada por uma chuva repentina
e o seu invencível sentido


Somos ainda os nativos, os mais remotos


Assim que chegarmos ao mar alto
e perguntarmos por que razão
seremos baixados por cordas
à casa  demolida ainda iluminada
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José Tolentino Mendonça. Introdução à pintura rupestre. Porto: Assírio & Alvim, 2021, pp 50-51.
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quarta-feira, 15 de dezembro de 2021


              Falando em línguas


Em Praga, descobri um café
sem música nenhuma a ameaçar-me as musas,
só as vozes humanas
vestidas de uma língua que não sei,
de declinações tantas e muito
fricativa

À minha frente, dois jovens desatentos
a tudo o que não seja pele e olhar,
nesse desejo inconsequente e belo
de acolher o abismo,
de ser um corpo só, uma só alma
(ou isso que chamamos ao que
nos sobrevoa)

Foi partilhada a fatia de bolo que pediram
em êxtase comum,
neste café deste pedaço curto da cidade,
e a língua de uma música tão estranha para mim
vestiu-se de paixão,
foi declinada com os dois sorrindo,
comendo o bolo, seria doce e bom,
mereceria Magnificats quem sabe,
decerto o olhar deles, sim,
porque daqui, do canto do café onde me sento,
sou ignorante
da língua e dos costumes,
mas não o sou do amor

Podia o bolo ser moldado entre ovos
sem sabor, farinha muito rude e pouco fina,
que lhes havia de saber na mesma
àquilo a que chamamos paraíso:
um corpo em sobressalto e a língua
a apetecer palavras generosas,
como beatífico ou resplandecente

E a gente toda sentada a conversar neste café
sem música, a cidade, o céu já a escurecer,
tudo agora à volta deles ganha um halo
de luz
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  Ana Luísa Amaral. Mundo. Porto: Assírio & Alvim, 2021, pp 86-87.
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Dia 18 será a Apresentação do Nº 4 da Revista Acanto na qual colaboro, para mais informação ver aqui:
https://www.jornaldeleiria.pt/noticia/numero-quatro-da-revista-acanto-apresentado-em-lisboa?fbclid=IwAR35f3C-qnVX4f8x2NZReI6B3iDpKVQk8BWCyhzVzU3uV7t5Gj0kPKsZdAs
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domingo, 12 de dezembro de 2021


É antigo o meu olhar. Vejo de muito longe e com traços inseguros todos os caminhos.
O tempo passa como um pressentimento inquieto. Afasta-se. Estreita-se. O que me espera, eu sei, é o ruidoso silêncio do esquecimento.
As minhas raízes hão-de fincar-se na terra, revelando o sinal invisível do abismo, à espera das cinzas, na perfeita simetria do coração, nas inumeráveis palavras.
Os meus passos, mais lentos, devoram a distância que me separa da mudez e conhecem a cor da poeira levantada pelos pés quando os pássaros iniciam um voo solitário.
Para além do horizonte, o mistério do invisível pertruba-me como um recomeço sem memória, sem limites, sem retorno.
Estendo as mãos para tocar a luz cada vez mais distante, cada vez mais indecisa, cada vez mais imprevista. E fixo essa luz até ao apagamento do brilho nos meus olhos.
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 Graça Pires. Antígona passou por aqui. S/c.: Poética Edições, 2021, p 80.
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sábado, 11 de dezembro de 2021


Continuarei a definir o exíguo espaço de uma errância no culto da palavra. Habita-me a expectante mudez de um náufrago preso ao barco que o salva.
Escavo o traçado de um alfabeto de subtil simbologia. Como deriva de âncoras sem retorno, ou um sacramento, ou uma gíria mística, ou uma vaga promessa de alegria, protejo na bainha do texto uma sintaxe quase sagrada.
Na lonjura de vozes antigas seguro a luz. Assombro-me da paisagem. Deixo que as palavras cedam inteiramente ao indizível subterrâneo da paixão.
Com um alarido preso à boca, leio os poetas das palavras claras e quebro no interior das pálpebras os versos mais cúmplices.
Semelhante a um primitivo nómada, guardo comigo o fogo da poesia, para que nunca se extinga e me seja confissão e esconderijo.
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 Graça Pires. Antígona passou por aqui. S/c.: Poética Edições, 2021, p 52.
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segunda-feira, 6 de dezembro de 2021


João de Mancelos é docente universitário e crítico literário. Paralelamente a essas atividades tem desenvolvido, ao longo dos anos, uma intensa atividade no que diz respeito à publicação de uma plurifacetada obra própria. Assim, e por não ser a finalidade deste texto o enumerar toda a produção do autor, saliento apenas: no ensaio, “O marulhar de versos antigos: a intertextualidade em Eugénio de Andrade” (2009), “Magia negra: a obra de Toni Morrison” (2014), “Todas as cores da América: a literatura multicultural” (2015); na poesia, “O teu nome incendiado de azul” (2016); na ficção, “Nunca digas adeus ao verão” (2021) e o presente livro de que passarei a falar.

Em “a rapariga que adorava finais felizes “(edições Colibri, 2021), João de Mancelos apresenta-nos um conjunto de treze contos que entretecem entre si aspetos comuns, o que dota a obra de homogeneidade e coerência, mas que, com exemplar fineza, introduz nesse mesmo comum uma miríade de categorias e subcategorias da narrativa, que tornam cada conto, não só completamente autónomo, como impossível de ser articulado com qualquer outro. Vejamos: entre aquilo que é semelhante podemos notar um certo etarismo, não com qualquer intento de descriminação, mas porque se visa fornecer um olhar específico sobre dados modelos comportamentais e dadas formas de sentir (ex.: pp 54-55), por isso, e à exceção do antepenúltimo conto, todos os narradores e personagens rondam a idade dos vinte anos. Também ao nível literário estamos perante um tipo de Realismo Social e Económico (atente-se às marcas da roupa, dos utensílios, dos carros, aos tipos de alojamento, às ocupações dos jovens, etc.), mas que, em dados momentos irrompe por um certo Realismo Lírico adentro (ex.:pp 36-37, p 39, pp 85-87) e encontramos mesmo dois contos situados entre o Fantástico e o Realismo Mágico (pp 59-63, 65-69) e estes dois contos, levam-nos a concluir que nada neste livro foi deixado ao acaso: numa conferência dada em 2015, subordinada ao tema d’ “as configurações do real”, Tristan Garcia não deixa de referir o ataque de Barbey d’Aurevilly a Zola, bem como o de Flaubert a Balzac, quando diz que este último ao querer fazer romance sociológico acabou desaguando em plena sociologia, já que para que serve, segundo T.G., reproduzir um real que já está ante nós e que não nos necessita para absolutamente nada?, daí a possibilidade de falar desse real de um outro modo e é aí que entra outro tipo de ficção, nomeadamente a dos dois contos de João de Mancelos que mencionei acima. Dito de outro modo: “em a rapariga que adorava finais felizes”, o autor não só experiencia vários tipos de registos dentro do Realismo (até de códigos linguísticos!) como também desmultiplica as categorias da narrativa em subtipos vários: narrador não participante (pp 11-15), narrador autodiegético (pp 47-51), narrador homodiegético (pp 65-69), etc., etc. O mesmo acontece ao nível das outras categorias da narrativa. Estamos, pois, perante uma tessitura onde o académico e o ficcionista decidem dialogar para, utilizando todos os recursos ao seu dispor, dar a ver – e a ler – dados agrupamentos sociais. E aqui, apenas como adenda, direi tão-só que João de Mancelos foge a “pintar” guetos ou elites: as suas personagens e os seus narradores são gente normal, daquela que se cruza connosco diariamente nos cafés, nas gasolineiras das autoestradas, nas estações de comboio; normal, não no sentido do espetacular denunciado por Debord, não no sentido do narcísico denunciado por Marie-France Hirigoyen, mas normal no sentido estatístico de Aldous Huxley ou no sentido do produzido por uma forma de poder específica como em Foucault, dito de outra maneira: João de Mancelos, através de um trabalho incomum, traz até nós, em “a rapariga que adorava finais felizes”, gente comum.

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Victor Oliveira Mateus

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quinta-feira, 2 de dezembro de 2021


como uma ilha     temos naufrágios por todos os lados
os pontos cardeais são exercícios de respiração
natação de almas perdidas

somos todos nós     nós de gravata

passa a caravana do luxo
os cães ladram
de dentes nos moinhos
pés no deserto
ainda agora um magro e um gordo
por aqui passaram num cavalo magro
e num burro
duas ambiguidades divinas

atiram-se moedas ao ar e cavam-se fontes
fundam-se cidades romanas
somos enxame
estamos no chão do progresso

os números apressam-se no calendário
nos galhos da árvore dos antepassados
a modernidade é uma mãe
uma máquina de calcular
não chamem mãe à bela baleia branca
perdoem-lhe o tato
a perna do capitão
o fim não é o pior
o pior é o aprodrecimento
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 José Gardeazabal. Viver Feliz Lá Fora. Lisboa: Relógio D' Água Editores, 2021, pp 35-36.
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