quinta-feira, 26 de maio de 2022


         o lugar do silêncio


não sei se acreditas
mas às vezes
penso que se fosses
uma felosa
como uma pequenina
que vi no alto
da montanha maior
da serra dos dinossauros
se fosses esse pássaro
eu queria ser como tu
para ter
tantas possibilidades
sobretudo a de voar
contigo
bem ao teu lado
voar
espreitando-te
de vez em quando
talvez tocando
com uma asa
numa das tuas asas
ao de leve
para não nos despistarmos
(o que se calhar
até era
o melhor
que nos poderia acontecer
que nos despistássemos
pelos ares)
...
mas antes disso
desse toque
mágico
de asas
eu queria mesmo
era voar
contigo
(espreitando-te
é claro
disso não
abdicava)
eu queria voar
contigo
até ao mar
lá em baixo
voar
contigo
sem medo
das grandes gaivotas
e dos peixes
que dizem que saltam
metros e metros
acima da água
queria voar
contigo
do topo da serra dos dinossauros
do topo do mundo
e escolher
exactamente
o lugar do silêncio
onde haveríamos
de pousar
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  António Manuel Venda. Barcelona. S/c: On y va, 2021, pp 33-35.
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sexta-feira, 20 de maio de 2022

quinta-feira, 19 de maio de 2022



Queria confundir-me
num bando de pássaros em migração,
mas perco o meu tempo.


Sinto muito, não minto
e não saio deste labirinto.


Sigo de embaraço em embaraço,
ser adulto tem de ser isto.


Passam-se dias, semanas,
sem saber de ti,
pior, sem sentir saudade.


Bebo,
fumo mais cigarros,
faço bom e mau sexo,
vou ao cinema,
vejo demasiada televisão,
deixo os livros, quase sempre,
sem virtude, a meio
e os poemas também.
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 Raquel Serejo Martins. Valsa a vau. Lisboa: Poética Grupo Editorial, 2021, p 110.
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quarta-feira, 18 de maio de 2022



Este poema tem um gato e um pardal,

o gato mata o pardal,

o gato não come o pardal,

é um gato sem fome,

é uma morte inútil,

é a tua indiferença perante a dor de um pássaro,

és tu sem perceber que também sou pássaro

e que morro inutilmente todos os dias.


 Raquel Serejo Martins. Valsa a vau. Lisboa: Poética Grupo Editorial, 2021, p 38.

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            Não te esqueças


De levar o melhor de cada um,
a potência plural de cada um,
o olhar mais sincero de cada um
quem te salvou,
quem olhaste nos olhos,
quem amaste profundamente
quem amas profundamente
com toda a luz do teu coração.


Não te esqueças de te sentar no lugar mais improvável,
por exemplo:
em frente de uma repartição no domingo, às três horas da tarde
na berma de uma autoestrada, no meio de um estádio vazio,
a meio do trajeto para tua casa,
de te sentares na berma,
de pôr as mãos no joelho
de respirar profundamente;
de não esperar nada de ti nem de ninguém –
de esperar tudo – absolutamente tudo – de ti e de toda a gente.
De aproximar uma folha dos olhos.
De imaginar o mar prateado
de comer a dobrada mais fria,
de fazer festas a um cão malhado:
e Arder. Arder. Arder.


Que amanhã dez mil borboletas vão chegar a Michoacan,
que para os gregos humanidade era um verbo,
que tudo é caminho e perder-se faz também parte do caminho,
que virar certas páginas é um incêndio
que este é um poema para a vida
que os animais não choram –
que os animais não riem –
que és um animal privilegiado
que afinal os animais choram e os animais riem
e que tens de esquecer tudo novamente
e aprender tudo outra vez a cada segundo que passa,
que uma pessoa é uma coisa que arde,
que madura, que ri, que se sustenta dentro de um fio,
que agora mesmo alguém cai abruptamente,
que uma estrela do mar é virtualmente eterna
e pode nunca morrer –
que um poema pode nunca morrer –
que um poema nunca morre – que na verdade (e talvez
virtualmente)
morremos a cada segundo (com um relógio no pulso)
que agora mesmo, no centro da América, uma mãe decide não
respirar,
dançar por dentro, nascer novamente,
que, devagar, um caracol sobe um muro branco numa aldeia da
Sicília
que um homem começa a sua marcha,
que nada se detém quando um homem começa a sua marcha,
que um continente pulsa,
que só podemos ver com os olhos dos outros.


Não te esqueças de perder uma chave,
de chegar atrasado a todos os compromissos,
de te sentar a meio do teu percurso,
no lugar mais inesperado, na hora mais inesperada,


De respirar fundo
De arder...

               Não te esqueças.
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Nuno Brito. Ode Menina. Porto: Editora Exclamação, 2021, pp 22-23.
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terça-feira, 17 de maio de 2022


Junto ao cais aprendi alguns dissabores,
por exemplo: a altura em que atento
à sombra do copo de cerveja
me falaste com olhos húmidos
de uma tarde de pura liberdade
passeando por cidades desertas.


Não desaprendi a memória, não:
guardo-a comigo para usos modernos.
Soube esperar melhor alguns momentos
de pouca importância, já não anseio
sentado no espelhado colo da noite.


Na verdade, perdi-me a bom perder
de todos os enredos que me trazes agora à mesa
como um mapa nervoso de veios marinhos.


Dois amigos encontram-se uma, duas vezes,
para sempre perdidos da memória que foi.
Alguém, quiçá um de nós, se lembrará de dizer:
«É bom, ainda é bom estar aqui.»
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Frederico Pedreira. Coração Lento. Porto: Assírio & Alvim, 2021, p 64.
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segunda-feira, 16 de maio de 2022


A saudade era outra.
As praias corriam livres de gaivotas
para o fundo do mar.
Só amanhecia tarde.
Tudo era muito tarde para nós,
vivíamos juntos sem o sabermos.

*

O canto da ave
aterra no meu ombro
polido, entre a concreta confusão
os olhos vendados avançam
para mais uma hora chegada
ao lume das conversas.
*

A noite na terra:
tenho os materiais todos reunidos,
as trevas do trabalho — lápis, aparas,
as réstias do desengonçado estaleiro.



O ecrã baço faz destilar a pobreza do verbo.
As parcas notícias no televisor submarino
de uma pacata vila costeira —
música de câmara para a morte que tarda.
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Frederico Pedreira. Coração Lento. Porto: Assírio & Alvim, 2021, pp 24-25.
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