domingo, 23 de julho de 2023


        A porta azul


Uma porta azul ferrete com um postigo,
abram-ma depressa. Que seja repentina,
dura, difícil de encontrar. Que tenha
tábuas com sinais de anos enormes
e esteja fechada a cadeado. Uma porta
é sempre a salvação não sei de quê,
um sorvedoiro, um rastejar à volta da mudança.
Não sei se esta porta é para o passado.
Quando a suspeito azul bem mais azul
que o pensamento, sei que esse mistério
irá descobrir o meu lugar. Um olho
de deus e do inferno, se eu acreditasse.
Abram-me esta porta, pintada e repintada,
azul para além do ar. Nem eu nem ela
sabemos para onde abre.


  Isabel Cristina Pires. O Planeta Irreal. Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2023, p 60.
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quarta-feira, 19 de julho de 2023


E l'anima è defluita, quasi sedimentosa,
e sono avunque le sue macchie,
grasse, non le pulirai,
solo il corpo s'erge, invulnerabile,
il vulnus è dentro,
io sono fuori.


 Aleksandr Malinin. Pelle e Ossa. Sannicola: I Quaderno del Bardo, 2022, p 49 (Prefazione di Alberto Pellegatta, Traduzione dal russo di Paolo Galvagni).
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E a alma é um escoamento quase sedimentado,
e estão por toda a parte as suas nódoas,
gordurosas, ninguém as limpará,
apenas o corpo permanece, inalterável,
a chaga está por dentro,
eu estou cá fora.
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Tradução de Victor Oliveira Mateus a partir da versão italiana, in Nº 8 da Revista Oresteia.
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terça-feira, 18 de julho de 2023

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divagam sobre a ausência presumida na existência.
as sístoles, tão dolorosas à noite,
ressoam o apertado dilema da ubiquidade,
e nada disto é aleatório ou alheio ao coração.
desfazem tensões acumuladas, ao mesmo tempo que se
calam para não amargar a sua ausência.
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 Maria José Quintela. Morrer e depois. Fafe: Editora Labirinto, 2023, p 45.
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sexta-feira, 14 de julho de 2023


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Dois poemas em inglês publicados recentemente na Atunis Galaxy Anthology 2024 - World Poetry. O presente número encontra-se online e foi editado a partir da Bélgica.

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domingo, 9 de julho de 2023



   Deus depois de Auschwitz: uma reflexão a partir de Hans Jonas

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(…) Jonas não nega, certamente, o evento histórico que Auschwitz constitui. Não aborda, porém, a questão sob uma perspectiva histórica, empenhada na descrição da conjuntura económica, política e social, no relevamento dos seus fundamentos, na averiguação das suas implicações e na sua consequente integração num esquema de causalidade onde adquire sentido e finalidade. O mal historicamente enunciado em Auschwitz recusa, com efeito, a sua confirmação a quadros de pensamento já elaborados, gerando uma cisão que recusa em absoluto o âmbito da justificação e da compreensão. Sob o espectro deste absurdo que o séc. XX testemunhou, estremece a própria noção de Deus, considerado nos seus atributos tradicionais – bondade, inteligibilidade e omnipotência. A capacidade que Hans Jonas reconhece a um acontecimento, não só para questionar a ideia metafísica de Deus, como sobretudo para simbolizar a experiência de um mal sem precedentes (…) Na verdade, da reflexão do filósofo alemão depreendemos, não a prova racional da existência de Deus, mas a possibilidade mesma de uma crença religiosa “depois de Auschwitz” a partir de um conceito de Deus capaz de resistir à evidência de um mal excessivo no mundo que, não sendo apenas obra humana, não pode ser também obra de uma divindade essencialmente bondosa. (…) A tarefa da regeneração do conceito de Deus empreendida por Jonas não cede, por conseguinte, à revivificação da crença num Deus que que compreende ou abarca em si mesmo a experiência do sofrimento (…) mas consolida-se, antes, como demanda de um Deus consentâneo com a inexplicabilidade própria do mal. A voz de Auschwitz é, em última instância, o testemunho do silêncio divino. E é na sombra desse silêncio que a concepção metafísica de uma divindade simultaneamente bondosa, revelada e omnipotente se estilhaça. (…) Depreendendo destas palavras a impossibilidade de reconduzir Auschwitz à ideia de bem universal, anula-se e torna-se verdadeiramente indefensável a concepção de um sofrimento redentor. (…) O artigo de Hans Jonas sobre o qual fazemos incidir a nossa investigação – “O conceito de Deus depois de Auschwitz” – debruça-se justamente sobre este problema, reflectindo filosoficamente sobre os contornos deste Deus silencioso em Auschwitz, cuja mão foi incapaz de aí intervir. O conceito de Deus, proposto pelo autor, fundado na tradição judaica, não transcende, é certo, o horror dos campos de concentração nazi, esquecendo-o ou atenuando-o através de uma justificação racionalmente elaborada, mas impede, por outro lado, o seu completo desvanecimento perante o absurdo do mal. (…) Nesta concepção de um esvaziamento de Deus no mundo perpetua-se um acto de renúncia de ser – verbo doado às suas criaturas para que sejam. Recupera Hans Jonas, deste modo, a ideia do “Tzimtzum” da Cabala luriana, ao fazer coincidir o processo da ontogénese com um autodespojamento ou contracçção da Divindade (…) Esta abnegação de si pelo mundo é desvanecimento total de identidade e plenitude divinas porque completa pulverização pelas condições do espaço e do tempo. Imerso num constante devir, o verbo divino conjuga-se num passado, presente e futuro, dispersando-se no fluxo da evolução do real, não se reunindo em si como Ser Absoluto, regente “transhistórico” do Universo. E se este Deus pode ainda ser pensado como Deus-história, ele não mais é pensado como “senhor da História” cuja mão orienta o mundo segundo um projecto divino, mas apenas como um Deus que se temporaliza e se espacializa. Um completo despojamento de si no acto criador não permite que Deus permaneça além do mundo como transcendência que o dirige...A perda de si, inerente ao acto criador, lança a divindade numa viagem sem plano previamente traçado, mas que progressivamente se deixa delinear no fluxo do tempo e, particularmente, pelo resultado das decisões humanas (…) Simultâneamente, Deus oferece-se como máxima presença, porquanto o mundo não é senão divindade caída, e como máxima ausência (…) depois de Auschwitz, o conceito de Deus preserva ainda a sua essência bondosa e inteligível, mas abandona a omnipotência de um Deus que não evitou o sofrimento das suas criaturas. Desvela-se, então, a partir do Deus silencioso de Auschwitz, um Deus impotente que esgota todo o seu poder na totalidade da sua criação. Deposto no mundo – aquilo a que Hans Jonas chama “o grande teatro” -, ele não mais se ergue para o dirigir, mas sucumbe perante as suas forças, confiando o seu destino ao rumo do universo e, em particular, à mão humana. Deus na história não é rei, uma mão poderosa e providente, mas vassalo dos seus acontecimentos mundanos, esperando das suas criaturas um cuidado que ele, desprovido de poder, não pôde nem pode prestar.

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Filipa Afonso in “A Questão de Deus na História da Filosofia, Vol. II”. Sintra: Zéfiro, 2008, pp 933-942.

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Nota - Foto de Hans Jonas (1903/05/10 - 1993/02/05).

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sábado, 8 de julho de 2023


O mundo envelhece, às vezes aziago,
e nós esbanjamos todo o tempo nele.
Sei que é lamentável repetir, mas tu lembras-te
da neve a derreter no fundo raso dos olhos,
como era fácil imaginá-la sem um mapa à mão -
pendurávamos as palavras na corda do rosto
para que soasse tudo certeiro e bem-intencionado?
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Não era perdão o que pedíamos
nesses tempos altivos, era a carne branda
da companhia porque éramos jovens
e vagamente interessantes. A palavra amigo
não tinha sentido algum, era mais um copo de água
numa mesa onde não havia comida, só o tilintar
dos talheres de prata roubados num rasgo de fantasia.
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Hoje podes escrever-me todos os dias.
Não sou rico nem ressentido.
Se me vires na minha cadeira
de-trás-para-a-frente não perguntes -
assisto só aos campos neutros da história,
o costume: o rapaz que fazia poemas de guerra,
o intelectual solene e não-parisiense
que numa mesa de pé-de-galo compôs
muitos versos recalcados à mãe dele.
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Levo para todo o lado o meu cinto-faroeste,
mal me esqueço da minha manha bem disfarçada -
não sou eu que digo que o mundo envelhece,
são coisas que vou ouvindo na rude telefonia
ao passear pelo alpendre de quatro paredes.
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Quando é que ficámos interessantes?
Tu lembras-te. sim, quando ainda em jovens
trocávamos por graça a ordem dos acontecimentos:
fazíamos girar gaivotas nos tectos negros das roulottes
e derramávamos cerveja no areal a caminho do mar,
engolindo corpo e espírito numa espécie de autofagia,
tão bela, demente. Podes escrever-me todos os dias.
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  Frederico Pedreira. Coração Lento. Porto: Assírio & Alvim, 2021, pp 31-32.
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