Alguém bateu à porta do vestíbulo.
Era Cornélia, toda em lágrimas, com o filho Miguel Ângelo.
Pôs-se de joelhos diante da cama e começou a lamentar-se em voz alta.
- Senhor, nosso benfeitor, senhor, nosso benfeitor.
O moribundo já não ouvia.
- Sou eu, Cornélia, a viúva de Urbino. De Francesco Amadori. E este é o seu afilhado, Miguel Ângelo.
(...)
Comecei a chorar.
Tive um acesso de fúria.
Renunciaste à vida dos sentidos, e aquele a quem amavas não está aqui. Deste-lhe o teu sentimento, grande como nenhum outro. Sofrias, crendo que os teus braços eram indignos de abraçar a pessoa amada. Mas ele era uma sombra. Deste-lhe o rosto de Cristo, e tu, senhor, foste o seu brinquedo. Se ele queria, tu empalidecias, se ele queria, o sangue inundava o teu rosto. Vias o mundo com os seus olhos. Tendo asas mais fortes, preferiste elevar-te com as dele. Deixaste-o apoderar-se de tua vontade. Preferiste ser a Lua que reflectia a sua luz, a luz do Sol.
Voltei a mim.
O moribundo deixara de estertorar. (...) Foi então que apareceu Tommaso del Cavaliere.
Sentou-se num banco, apoiou o cotovelo no joelho, calado.
- Já há muito tempo que o Mestre está a dormir?- perguntou subitamente.
- O Mestre está a morrer.
Tommaso virou lentamente a cabeça, levantando os olhos para mim. Depois virou-a de novo, e apoiou o queixo nas mão enlaçadas.
(...)
- Durante toda a vida o Mestre não fez outra coisa senão dar.
- Era rico.
- Era um pobre.
Tommaso evitou o meu olhar. Calámo-nos
De repente o doente gemeu.
Tommaso levantou-se de um salto.
- Á...gua - sussurrou o Mestre.
Quando eu ia buscar um copo, Tommaso inclinou-se sobre ele.
- Mestre - disse em voz alta e clara - sou eu, Tommaso, sou eu Tommaso... Não me reconhece, Mestre?
Os olhos brilhantes do Mestre estavam imóveis.
- Sou eu, Tommaso, eu, Tommaso - gritava.
Deixou-se cair num banco e escondeu o rosto nas mãos- Chorava.
(...) Daniello da Volterra conseguiu regressar a tempo de o ver morrer (...). Com dois dedos, Daniello da Volterra cerrou as pálpebras do morto.
Tommaso inclinou-se e depositou um beijo sobre o rosto imerso na paz da morte.
Mas ele já não o sentiu.
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Stryjkowski, Julian. Tommaso del Cavaliere. Lisboa: Edições Cotovia, 1990, pp 88-93.
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Nota - A passagem "Deste-lhe o rosto de Cristo" refere-se ao facto de, com um certo mal estar, os católicos terem vindo a descobrir, tempos depois, que o Cristo de Miguel Ângelo tinha o rosto de Tommaso del Cavaliere.
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