quinta-feira, 30 de janeiro de 2020


         O Sonho de um Verão


O incessante acorde das ondas
num qualquer lugar do mundo,
onde tudo é mais fácil e a brisa
da noite nos envolve.
Os risos, os amigos, o sereno
rumor da história
quando, descendo a encosta,
sentimos a areia em nossos pés.
A vida era tão-só
o calor e uma casa à beira-mar.

E era outra vida aquela que vivíamos
nos meses d'inverno,
onde o amanhã não era ontem para sempre
e o tempo ia impondo
o seu implacável exílio da vida.
Por isso decidimos o exílio,
mas um outro mais simples e benévolo,
em essência mais nosso, podermos ser,
num instante, nós mesmos para sempre.

Compreendemo-lo de imediato,
nós escapámos da ruína
mas outros, nem sempre dos nossos,
tiveram de esperar na estação,
no cais, sem casa, sem trabalho,
implorando ao menos um lugar
ou um prato vazio
onde extinguir-se ou extinguir suas penas.

A viagem salvou-nos,
foi suficiente, e regressámos todos
inteiramente felizes.
No último dia, uma folha caiu
de uma árvore do jardim
e suspirámos com o olhar colado
na enseada e no molhe.

Depois abalámos seguros
de que a realidade supera o sonho
e não podemos escapar continuamente
à sua implacável visão,
à visão brutal de uma miséria
que jamais conheceremos.

Escapámos - soube-o então!- convencidos
de que o mundo é perfeito
num outro lugar do mundo.


Vega, Mario. La mala conciencia. Madrid: Hiperión, 2019, pp 18-19 (Tradução de Victor Oliveira Mateus).
.
.
.


terça-feira, 28 de janeiro de 2020


             desamar o silêncio 


como posso eu amar ainda o silêncio
depois de ouvir um pássaro cantar
no teu peito inundado de azul?
.
.
 Mancelos, João de. Luzes distantes Vozes perdidas. Lisboa: Edições Colibri, 2020, p 47.
.
.
.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020


            pássaros de sombra


que melancólicos pássaros de sombra
vêm poisar
nos ramos da memória?
.
.
 Mancelos, João de. Luzes distantes Vozes perdidas. Lisboa: Edições Colibri, 2020, p 34.
.
.
.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Luís Rego escreve na Agenda Açoriana sobre o romance Maria Bettencourt, Diários de Uma Mulher Singular (Editorial Planeta, 2019) de Henrique Levy.
.
DESASSOSSEGO LITERÁRIO

Tenho um fraquinho por livros que conseguimos ler de uma só vez, quase com uma só respiração, de um só trago. Falo muito na Pomba, mas O EstrangeiroO Velho e o Mara MetamorfoseA Alice no País das MaravilhasO Bracinho, entre muitos outros, enquadram-se numa categoria muito particular: o pequeno romance. E estes livros funcionam muito bem porque as emoções resultantes da leitura ficam mais compactas e acabam por ter mais impacto e profundidade. Tentei ler de uma só vez O Rapaz do Tambor de Lata, ou mesmo A Montanha Mágica e falhei redondamente, ou porque caí para o lado, ou porque a córnea se irritou comigo ou com o livro, não sei.

Foi um pouco neste espírito velocista que me agarrei ao livro Maria Bettencourt, Diários de uma mulher singular. Quando senti o livro pela primeira vez percebi de imediato que o conseguiria ler de uma só vez. Depois foi só esperar pelo momento certo.
.

Dia 1 de janeiro de 2020
.
Comecei e acabei hoje de ler um livro muito interessante do Henrique Levy sobre a intricada vida de uma mulher, inserida numa ideia de família, com algum peso social na ilha de São Miguel, Açores. Um dos pontos que mais me agarrou à leitura foi precisamente o facto de se passar nos Açores. Não posso deixar de me admirar com a coragem do Henrique, que não sendo de cá, transportou-me para uns Açores que acredito existirem. Em muitos pontos e linhas os Açores que conheço e reconheço. E isto vai desde a paisagem, à geografia concisa, mas também à cultura e à linguística. E eu gosto muito de ler livros que me conseguem fazer sentir Açores, e que este arquipélago não é um mero pano de fundo para uma história qualquer. Depois, também creio ser de uma coragem extrema um homem escrever na pele de uma mulher. Não é fácil, e é francamente assustador. Os homens são considerados péssimos escritores de personagens femininas. O Henrique, que disse gostar de águas agitadas, parece ter-se atirado de alma e coração a esta tarefa.
.
29 de janeiro de 1970 - Página 84
Um toque de surrealismo. Maria Bettencourt decide vender, e vende, um dos T’s do seu nome ao agora TTavares.
.
13 de abril de 1970 - Página 85
A Maria Betencourt tenta readquirir o segundo T. E consegue, embora tenha de pagar o dobro do valor que recebeu pela venda inicial.
.
11 de maio de 1972 - Página 123
Há uma frase, creio que do Daniel de Sá, "sair da ilha é a pior forma de ficar nela”, que me parece falar sobre ausências. Eis que Firmino diz, às tantas, “Só vale a pena morar para sempre em alguém, se para isso não for necessário ausentarmo-nos de nós.” Tem um pouco de filosofia e poesia e funcionou muito bem naquele momento do livro.

17 de maio de 1972 - Página 129
“Nunca percebi a razão para a mamã me ter ensinado, desde pequena, a agradecer a Deus por mais um dia! Pois, afinal, para nós, é sempre menos um dia”. A religião a desembocar no distante existencialismo, uma espécie de quente e frio para a sobremesa.
.
“Ó bezuga! Atiram, como piropo, os mestres, quando passo numa qualquer obra. Para, reles, acrescentarem, após constatarem a espessura das minha lentes. Tira os óculos e vamos brincar à cabra cega!”

Também gosto muito do sentido de humor e gostei muito deste momento, que hoje seria considerado sexista. O que vale é que estávamos em 1972.
.

30 de junho de 1976 - Página 139
Após votarem, pela primeira vez na vida, e de uma forma quase arbitrária, Maria reflete sobre o facto. “Mas que raio de legalidade terá o resultado destas eleições se todos tiverem votado como eu e a Tázinha? Uma em fúria, outra com problemas de classe. A partir desse dia, comecei a desconfiar da democracia!”. Creio que a dúvida permanece até hoje, ficando também a certeza de que se a Maria tivesse um partido qualquer podia muito bem ser deputada. O jeito que não tinha dado? É que a profissão de bombista está cada vez mais difícil.
.
7 de janeiro de 2020.
.
Hoje vejo-me a escrever sobre o livro do Henrique por todas as razões acima mencionadas, e porque gosto muito do tom informal e descontraído. Gosto também do anacronismo, pois não existe a preocupação de emprestar uma sequência lógica e correcta entre as entradas no diário. E finalmente gosto da simplicidade dos diálogos e da forma em que entram na narrativa, sem pedir licença, faz favor, rompendo com as normas de etiqueta literária até aqui estabelecidas. Quem terá criado tais regras?

Fica evidente que é uma pergunta que não preocupa minimamente o Henrique. E se puder dar uma opinião, já que não fiz mais nada até aqui, creio que faz muito bem. 
.

Luís Rego
.
.
.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020


Ninguém chegou, nem sequer o ressoar
de distantes passos desde este outro céu escrito,
não tenho notícias de mim próprio, e é estranho;
porém conservo sobre a mesa os afectos,
a oração da infância, imagens às quais não dei nome,
e o xadrez do desvelo.

Não tenho nem uma testemunha, doador ou guia,
alguém que veja dentro de mim e que dê andamento aos relógios.

O cheiro a sândalo impregna tudo.

Desfolhei abril até ao último cruel segundo
e tudo é detido.

A quietude dura o mesmo do que esta luz que me abate,
cada ruído é uma hora,
de dura casca o momento.

O olhar detém-se nos recantos.

Ando de um quarto para outro,
como num passeio sob as nuvens,
a tocar as ranhuras do tempo
com o frio pegajoso nas mãos.

Rememoro o musgo a cobrir a quietude,
o óxido que sigiloso faz crescer escombros,
o tédio escavando portas e paredes
e o júbilo de juntar pedras para o porvir.

Hoje não haverá descanso.
O repouso reduz-se a nada para sempre.

Preservo o hábito de passar o índice
sobre água clara deixando-se desejar.

De repente surpreende-me a presença de alheias lembranças
e de dias extraviados.

.
.
 Rodríguez, Gerardo. Poemas de Almanaque para Entretener Marionetas. Fafe: Editora Labirinto, 2019, p 116-118 (Tradução de António Salvado).
.
.
.


terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Digna Irreverência . Aguerrida Conmoción (Editora Labirinto, 2019). Livro bilingue: tradução espanhola de Jacqueline Alencar.


                   penélope

fico por casa.
tenho de limpar o pó às ideias velhas.
algumas gavetas de pormenores por esclarecer.
a prateleira central da comoção
tem bastante espaço ainda por ocupar:
tenho de decidir o que lá fica
e o que estou disposta a conter.
fico por casa porque há um friso de névoas
que não se desvanece com o aspira-dor
pois as dores visíveis são enganosas
habituam-se a lidar com o espelho
desafinam as selfies do dia-a-dia
incriminam passos inocentes
para resguardar o que move e importa
a este lar do puro deslumbramento
onde todos nos acolhemos no Outono.
fico por casa temerária dos espirros
e das tosses sinalizadoras da fraca
resistência do peito, deste meu peito
tão forte de ressonâncias e ritmos
como prenho de saudades e memórias.
fico por casa, meu querido amor querido.
espreitarei à varanda o pôr-do-sol
virei esperar à janela, com as cadelas
o teu regresso dessa diáspora, meu ulisses
vagueando entre o temor e o valor
mais nobre que alguém algum dia honrará.
fico por casa ansiando a maré
do teu corpo, esperado encontro de chama
com a chama que bem resguardo e acalento
mesmo que os teus passos marinheiros
desconheçam ou desconfiem: mesteres
difíceis da viagem humana
ficarmos, por vezes, presos a uma imagem
uma representação que nos querem conferir
mas não nos cabe nem caracteriza ou contenta.
fico por casa sem tocar mais na colcha
porque quero ser co-criadora do mundo
e neste mundo aqui e agora quero o regresso
do meu herói de carne, osso e lava viva
independentemente da cor dos caracóis
e sem que nada mais importe do que a vida
que nos tem agastado e afastado por marés
de consolo e desconsolo; exauridos.
fico por casa, tomo aos ombros a sagrada colcha
abotoo o corpete de luz e alegrias
aceito a força imensa da brisa salgada
que se te adianta sempre quando vens.
fico por casa onde estremeço, renascida:
e despudoradamente tua enquanto viva.
.
.
 Toscano. Maria. Digna Irreverência. Aguerrida Conmoción. Fafe: Editora Labirinto, 2019, pp 76-77 (Tradução para espanhol de Jacqueline Alencar).
.
.
,

sábado, 4 de janeiro de 2020

Duas novas traduções de um poema de um livro meu datado de 2004.
Publicadas aqui: https://www.facebook.com/notes/marcela-filippi/qu%C3%A9-voz-llora-por-m%C3%ADquale-voce-piange-per-me/3256311297731377/?hc_location=ufi
.
.
Quale voce piange per me
dall'altra parte delle grandi pietre? Quale lamento? Quale mormorio
attraverso la debole ombra degli arbusti? Forse è il vento: il colpo
di uno strano vento oceanico sul mio volto mentre dormo.
O forse è il sole che annodandosi alle lunghe nuvole, poi cade verticale
sul mio corpo. O potrebbe - Cosi lo sa? - anche non essere nessuna
di quelle cose; forse solo lo sfuggente sibilo di un rettile
nella sua astuzia per tentarmi.

Ma no, nulla di tutto ciò potrà piangere per me dall'altra parte
delle grandi pietre. Nulla, a meno che non sia l'eco dei tuoi occhi;
il blu sdilinquito di quegli occhi in cui il mio sogno era una nave
illusoria e le parole naufragavano nella radice del mio desiderio.
.
.
Mateus, Victor Oliveira. Pelo Deserto as Minhas Mãos. Carcavelos: Coisas de Ler, 2004, p 15 (Tradução de Marcela Filippi).
.
.
Qué voz llora por mí
al otro lado de las grandes piedras? Qué lamento? Qué murmullo
por entre la débil sombra da los arbustos? Tal vez sea el viento: el
golpe de un extraño viento oceánico en mi rostro mientras duermo.
O tal vez sea el sol, que angarzándose a las largas nubes, cae después
vertical sobre mi cuerpo. O también - Quién sabe? - tal vez no sea ninguna
de esas cosas: tan sólo el huidizo silbido de una reptil en su
astucia para tentarme.

Pero no, nada de eso podrá llorar por mí al otro lado
de las grandes piedras. Nada, a no ser el eco de tus ojos; el azul
desmayado de esos ojos donde mi sueño era un barco ilusorio
y las palabras naufragaban en la raíz de mí deseo.
.
.
Mateus, Victor Oliveira. Pelos Deserto as Minhas Mãos. Carcavelos: Coisas de Ler, 2004, p 15 (Tradução de Freddy Castillo Castellanos).
.
Ver também aqui:  http://intraduzionisolmar.blogspot.com/2019/12/que-voz-llora-por-mi-quale-voce-piange.html?m=1 
.
.
.
.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020



                        Gramática do desejo


Essa lâmina de fogo é o desejo,
essa maré de ouro,
esse rebento de névoa
que em ti abrigas, estremeço,
com um mero olhar.
.

Um acorde no ar
desafinando todos os muros.
Algo feito de humidade
como um caracol cujo ouvido
um som de vida e morte reconhece.
.

Talvez uma pele que arrasta
ainda filamentos de lábios
extraviados na luz.
.

Algo que anoto e, na página,
é um puro toque entre os meus dedos,
como uma concha e suas espirais,
como a música e a noite,
como o raio de um corpo que me escapa.
.
.
.
 Gan, Trinidad. Donde Está el Fuego 7. Brooklyn, NY: Editorial Cuadernos de Humo, 2018, p 6 (Tradução de Victor Oliveira Mateus).
.
.
.