quinta-feira, 26 de dezembro de 2019


           O purificador nocturno


Às vezes ignoro as luzes,
o que gravita como ofício de poder.
É uma insónia intacta e sem estrelas
em que a rosa abre as mãos,
aquece a fruta desabrochada
e rebenta os poemas
que cantam e estremecem
fora do mundo.
A tectónica vivificada pela força do sal
que é uma queimadura nos dedos
a escreverem o cristal
até se tornarem transparentes
como corpos diluídos pela chuva.

A identidade é fechar as pálpebras
à noite
e virar-se de costas
para acender a salvação.


  Pessoa, Maria João. Emoções Fora da Lei. Fafe: Editora Labirinto, 2019, p 30.
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Nota - Prémio Internacional de Poesia António Salvado/ Cidade de Castelo Branco.
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quarta-feira, 25 de dezembro de 2019


                                                         A Caça


   Há muito que a mulher procurava algum consolo nas aplicações de encontros e obtinha apenas a crença minguante em emparelhar com alguém que a satisfizesse.
   Na véspera, siderada pelo marasmo em que vivia, pegou no telemóvel e horas depois viu-se estacionada numa rua sem saída. Encontrou-se com um rapaz de vinte e nove anos - um deputado. Começaram a foder na parte de trás do carro dele, com as pernas dela apoiadas uma em cada janela. Era a primeira vez que se encontravam. Não pretendia voltar a vê-lo. Nunca repetira um encontro. Não valia a pena. Talvez o problema residisse em si própria, na sua falta de interesse por cumprir as regras. "Não se fode no primeiro encontro." Qualquer mentecapto sabe as regras.
   Em ocasiões regadas a álcool, tinha estado com mais do que uma pessoa por noite - o seu recorde foram três. Naquela noite também saiu com ideias de caça grossa. Foi jantar sozinha e, ao balcão de um dos restaurantes mais icónicos da cidade, onde era cliente assídua, aviou uma garrafa de vinho. Decidiu então começar por marcar encontro com o menos atraente da lista. Escolheu uma pensão perto do restaurante. Já estava no quarto quando ele chegou. O pobre rapaz era inexperiente, mostrou-se nervoso e constrangido quando a mulher abriu a porta. Afinal não era gordo, tinha um rosto redondo, e as rugas eram de expressão, típicas de quem se ri bastante. Suava um pouco junto ao buço, pôde vê-lo pelo brilho excessivo junto ao lábio superior. Pareceu-lhe um leitãozinho e isso despertou-lhe ânsias de o comer. O rapaz ainda tentou fazer conversa, mas a mulher não lhe deu abébias, enfiou-lhe a língua na boca num gesto ostensivo de gula. O sexo fora demasiado gentil e efetuoso, o que a encheu de enfado. Ainda não tinha abandonado o quarto, aproveitando a ida do leitãozinho à casa de banho, e já estava de telemóvel na mão a tratar do encontro seguinte. Apercebeu-se que o aparelho tinha pouquíssima bateria. Aceitou ir ter a casa de um tipo com quem não tinha trocado mais de vinte linhas de conversa. Não era longe da pensão. Despediu-se do leitãozinho. "Até nunca  mais". Apanhou um táxi para a morada que o tipo lhe indicara por mensagem. As fotografias mostravam um homem forte, moreno, musculado. Ia comê-la com ganas, tinha esperança que sim. Apanhou o elevador até ao segundo andar e tocou à campainha. Reparou no tapete da entrada onde podia ler-se "Chegay". Segundos depois apareceu o tal homem. As fotografias faziam jus à imagem presencial. Estava perante um enorme cavalão de fato de treino e com aparência de bimbo, é certo, mas ainda assim com mais de um metro e noventa de altura. Puxou-a gentilmente pelo pulso direito para dentro de casa e, após ter fechado a porta, encostou-a com o peito à parede, colocando-a de costas para si. Arregaçou-lhe a saia a apalpou-lhe o rabo todo. Foi sodomizada contra a parede durante uns bons quinze minutos. Quando apanhou o elevador para sair do prédio, doía-lhe um pouco o rabo e não estava satisfeita. Ouvira histórias de pessoas que foram agredidas nestes encontros com desconhecidos. Nunca tinha isso em mente quando decidia ir à caça. A fome era superior ao receio, e além disso era um traço da sua personalidade - ser deveras imprudente. Por isso, mal se viu na rua voltou a pegar no telemóvel. Infelizmente, o visor a negro indicava falta de bateria e, portanto, o fim da caça,.
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 Chéu, Cláudia Lucas. A Mulher-Bala e outros contos. Fafe: Editora Labirinto (Coleção contramaré Nº 25), 2019, pp 109-110.
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"A Mulher-Bala e outros contos" de Cláudia Lucas Chéu. Fafe: Editora Labirinto, 2019.
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terça-feira, 24 de dezembro de 2019


lembras-te? eu chovi o profundo sangue até à flor da pedra e tudo
secou por sobre a mesa aberta e nua e nem um sismo
breve e só de eu haver florido me amanheceu - oculto
Job abismado e estreito sob os bordados luz dos cimos da Hora.
riram canções de roda a levedar a dor e eu silêncio e chão,
lembras-te?
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lembro-me, paramentado já da terra longa perscrutei a estrada
na pele, na pedra, na ossatura da voz, na paciência sã do porejar
da rosa
pétala a pétala e icei-me - cão lazarento no desespero último
da vindima do amor - cravei os dentes nos tornozelos
do vento: pungente exumação, despertar silencioso, lento
rasgar do insaciável ventre do unânime e tirânico lodo. Tu
lembras-te? lembro-me do sangue à flor da estrada
aberta e nua e enlameada de eu chover todo e pobre ______
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mas uma gota houve dissonante e sem nome, tão simples - perfeita
manhã de adeus; pirâmide de todas as lágrimas - rigorosa e
lúcida a irrigar
os sulcos das minhas mãos vazias onde me reouve de
sórdida sombra.
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e eis que regressas vaidoso verão pejado do âmbar dúctil
e laudatórios sins
e tudo seca - iteração acerba - por sobre a mesa verde e aberta
de bordados luz atoalhada; regressas insaciável, tirânico e unânime
a alvorar
galopes, sono e sol e és poder e impotência só       extinção
e chama fulminante: farisaica boca a devorar o breve sismo do meu
brotar
do latente imo da pedra rumo à noite em branco do silêncio.
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  Rocha, José Rui Rocha. O Livro Breve da Pedra Errante. Fafe: Editora Labirinto (Coleção contramaré Nº 27), 2019, pp 16-17.
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"O Livro Breve da Pedra Errante"  (Editora Labirinto, 2019) de José Rui Rocha, Menção Honrosa no Prémio Internacional de Poesia Victor Oliveira Mateus 2019.
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segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Nos primeiros anos que se seguiram a 2000 a Labirinto organizava uns pequenos livros temáticos em que participaram vários autores. Os temas foram vários: a Liberdade, o Natal, a Mulher, etc. Colaborei em alguns deles. Quando me convidaram para o livro cujo tema seria o Amor, resolvi fazer uma provocação: escrevi um poema de uma grande simplicidade, simplista mesmo, pejado de imagens batidas a só com rimas pobres. Ninguém percebeu a minha artimanha e alguns amigos pensaram mesmo que eu estava numa fase de grande mediocridade, que estava a escrever como um menino de 9/10 anos. Pois bem, confesso agora: era mesmo uma coisa desse tipo que eu queria fazer, e pela reação dos pares consegui: eu pretendia um pequeno texto, muito primário, baseado na belíssima cena acima sugerida do filme Peixe Lua de José Álvaro Morais. Quem vir a cena no youtube perceberá! Ora, nesta época de Festividades, creio que fica bem uma coisa sobre o Amor, algo cuja arquitetura seja tão-só uma inocência deste tipo, um fulgor que aproxime.
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.E se te transformasses em pássaro?
Eu transformava-me em céu, um vasto céu azul com nuvens de fogo
nas pontas e sulcos de pétalas no centro: um fulgurante azul celeste
criado só para ver todo o fascínio do teu irromper,


E se te transformasses em água?
Eu transformava-me em fonte, ou talvez numa nascente, que a ânsia
de ver-te inundasse e nas paisagens que te vou escrevendo a minha
sede abrandasse.


E se te transformasses em estrela?
Uma imponente estrela de espuma com brilho de lava e gestos de
vento? Eu transformava-me em sombra, uma sombra incandescente,
onde tu: pássaro, água ou estrela, pudesses andar e na varanda da
minha espera devagarinho viesses pousar.
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  Mateus, Victor Oliveira. Coleção Afetos, Amor: Fafe: Editora Labirinto, 2008, p 56.
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quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

OBRAS RECÉM PUBLICADAS EM QUE COLABORO:
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1. O Sangue dos Rios . Antologia Poética organizada por Pedro Miguel Salvado, Carlos d'Abreu e António Lourenço Marques. É uma obra publicada pela Câmara Municipal do Fundão e que se insere nas comemorações dos 100 anos do nascimento de Fernando Namora.
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2. Da Ruína da Palavra à Magia do Nome (Matosinhos: Seda Publicações, 2019). É uma Antologia Crítica e Pessoal dedicada à obra de Ricardo Gil Soeiro. A obra integra ensaios de: Maria João Cantinho (coordenação), Armando Pego Puigbó, Hugo Pinto Santos, Manuel Gusmão, Francisco Serra Lopes, Fernando Silva, Felipe Cammaert, Victor Oliveira Mateus, António Carlos Cortez, Maria do Rosário Lupi Bello, José Ángel Cilleruelo e Rodrigo Inácio Meneses (Antologia Crítica) e Ricardo Gil Soeiro (Antologia Pessoal).
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       A tentação: fala a serpente


Olha como é macia
a minha pele, mais macia
que a dele

como dispenso pernas,
braços, mãos, e me confundo
a verde e a castanho,

e o tronco atrás de nós
se compraz no meu corpo
e toda a árvore estremece
de prazer

Vem comigo e partilha
o segredo de ser sob
as estrelas: um lume
original

Não tenhas medo,
não te assustem as cores
da minha pele
nem o meu olho em fenda,
porta de entrada para tantas delícias
perdidas no jardim

nem esta coisa bífida
que fala,
mas que eles dizem fundir-se
com o mal

A lisura macia
que te ofereço
não custa o sal da terra:

tem o preço
do sol
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   Amaral, Ana Luísa. Ágora. Porto: Assírio & Alvim, 2019, pp 97-98.
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quarta-feira, 11 de dezembro de 2019


         Salomé após o crime


Quantas vezes te vi
e me surpreendi porque te olhava?
Sentindo a tentação de te espiar
e o desejo de amar
o que não tinha

Como saber
pelos sonhos mais nus
que me assaltavam
que eu não era paisagem
para ti?

Dizem luxúria só
onde houve amor
e um crime tão enorme de luxúria:
mas eu quis-te indefeso
como festa,
os teus lábios a festa para mim

Quantas vezes me vi
pensando no meu crime
e na história dos homens
a julgar-me!

Mas o que eu li
na bandeja do crime
foram os olhos com que tu
me olhavas
(finalmente eu paisagem)

e a luxúria
que há sempre
no amor


  Amaral, Ana Luísa. Ágora. Porto: Assírio & Alvim, 2019, pp 41-42.
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terça-feira, 10 de dezembro de 2019


        Carta a mim mesmo


Entre um mar de imagens vago
bêbedo nas paisagens interiores
da madrugada.
Lembro os cavalos que um dia
montei num poema improvisado.
Cavalos que saltavam a incerteza
e a carne acumulada da solidão.
Lembro as casas sem luz, estranhas
que um dia ergui com palavras.


Agora sou aquele construtor
mais velho, mais lavrado
seu coração de pedra,
mais limpo e menos pesado,
livre das lascas que arrancaram
o amor e o mar,
as garras do medo e do vento.
Sagrado cinzel do amor,
dá-me tempo
para olhar a imagem esculpida
da verdade que levo dentro.
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 Salgueiro, Alfredo Ferreiro. Teoria das Ruínas. S/c.: Poética Edições, 2019, p 37.
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domingo, 8 de dezembro de 2019


                     As moscas


Sorvem restos de açúcar
as moscas congregadas
pelo cheiro do poeta
no recanto do café.

Um poeta nunca morre
completamente.
É a compensação
por ter passado a vida
meio morto.

As moscas acodem
por causa da doçura
que sua amargura verte,
a doce melancolia
da paixão perene
que o ata e desata
em versos de violência e paz,
a golpes de amor e de espada.

As moscas sabem.
É doce a maldição
que do poeta mana,
é o sangue, é o suor,
é a lágrima que o associal
verte para redimir
a perversa sociedade.
É o cativeiro vital
de quem acode
chorar o que outros
entregam à morte.

Por isso as moscas libam
a lírica miragem
daquele que as observa.
Imortais companheiras
que versificadas zoam
sobre um corpo a desalmar-se
no recanto de um café.
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 Salgueiro, Alfredo Ferreiro. S/c.: Poética Edições, 2019, pp 26-27.
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sábado, 7 de dezembro de 2019


   A perfeição coloca-nos perante a realidade como se de um facto consumado se tratasse (...) Existe só para ser admirada... à distância. A amizade construída sobre esse chão é devorada por uma tensão nascísica: escolhemos "amigos" pela sua importância, estatuto, aparência. Fazemos da amizade uma busca do aplauso. (...).
   Abraçar a imperfeição é aceitar a amizade como uma história em aberto, que conta ativamente connosco. Na imperfeição é sempre possível recomeçar. A imperfeição permite-nos compreender a singularidade, a diversidade, o real impacto da passagem do tempo em cada um. É verdade que as nossas fragilidades dão-nos também a ver as nossas singularidades. E é o impacto da fragilidade em nós que mostra a nossa realidade mais profunda, mostra a vida de Deus e os seus vestígios. Nesse sentido, a imperfeição humaniza-nos. Acolhê-la é uma condição necessária na amizade, e na maturação pessoal que nos cabe fazer. O mais urgente é aprender a semear, num trabalho de confiança, de desprendimento e simplicidade cada vez maiores. (...) Todos somos feridos, opacos, inacabados. Cada um de nós traz dentro de si uma quantidade irrazoável de sonhos sufocados, de pontas desacertadas, de palavras que não chegaram a ser ditas, de uma violência interior, mais difusa ou concentrada. Mesmo a nossa felicidade vem misturada com a memória de infelicidades que ainda nos ardem, mesmo que as calemos. Somos mais verdadeiros, porém, quando tomamos consciência disso e quando o partilhamos na confiança de uma amizade. Os mecanismos de autodefesa e de culpabilização só nos isolam mais.
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 Mendonça, José Tolentino. Nenhum Caminho Será Longo. Para uma Teologia da Amizade. Prior Velho: Paulinas Editora, 2019, pp 143-146.
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quarta-feira, 4 de dezembro de 2019


   Muitas vezes, quando vamos ao encontro do nosso rosto, sentimos com surpresa que passou um tempo. Aconteceram ambas as situações: tanto temos uma aguda consciência da passagem do tempo, como o tempo para nós é uma surpresa, pois não demos que tenha passado, ou tenha passado, por nós, assim. Numa vida espiritual acesa precisamos de meditar sobre o tempo (...).
   Falar do tempo é falar desta complexa aparição a nós próprios, referir a surpresa com que nos colhemos, nomear o espanto de, tantas vezes, sermos uns completos estranhos para nós próprios (...) pois cada um de nós é um fluxo, uma viagem, um projeto aberto, uma epifania inacabada..
(...) Os amigos trazem à nossa vida uma espécie de atestação. Os amigos sabem o que é para nós o tempo. Eles testemunham que somos (...) E fazem-no não com a superficialidade que, na maior parte das vezes, é a das convenções, mas com a forma comprometida de quem acompanha. O olhar do amigo é uma âncora. A ela nos seguramos em estações diferentes da vida para receber esse bem inestimável de que temos absoluta necessidade e que, verdadeiramente, só a amizade nos pode dar: a certeza de que somos acompanhados e reconhecidos. Sem isso a vida é uma baça surdina destinada ao esquecimento. (...) Já escrevia Aristóteles na Ética a Nicómaco: "O homem feliz tem necessidade de amigos." Nós adoecemos da ausência de amigos. Precisamos desse reconhecimento mútuo, pessoa a pessoa: um reconhecimento não fundado no confronto ou na competição, mas no afeto; não determinado meramente pelas leis da justiça ou pelos vínculos de sangue, mas assente na gratuidade. (,,,) Mesmo se for um único instante de contacto o que tivermos, tal basta para deixar transparecer uma amizade que existe.
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Mendonça, José Tolentino. Nenhum Caminho Será Longo. Para uma Teologia da Amizade. Prior Velho: Paulinas Editora, 2019, pp 111-118.
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