sexta-feira, 27 de novembro de 2020


 
Para onde me caiu a palavra,
a imortal (1) solidão, que se levanta
por detrás de um íngreme desfiladeiro;
por detrás das imagens,
que, pesadas, sufocam este sono
de onde nunca ninguém regressou?


Para onde me caiu a palavra,
o desistente olhar, que, sem coração
nem brilho, apenas desenha
esse implacável incêndio,
onde a morte é uma flor
bem no centro do vazio?
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(1) Primeiro verso e título de poema de A Rosa de Ninguém. Tradução de João Barrento.
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  Mateus, Victor Oliveira. A Norte do Futuro, Antologia de Homenagem a Paul Celan no centenário do seu nascimento. S/c.: Poética Edições, 2020, p 94 (Organização e Prefácio de Maria Teresa Dias Furtado).
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domingo, 22 de novembro de 2020


                             Cidade Incompleta

     Deja, oh rico!, comer lo que te sobre,
     porque algo más que un perro será un pobre,
     y tú no querrás ser menos que un lobo.

      José María Gabriel y Galán, A un rico


Se a cidade se impõe pelos excessos
de farta luz, pela abundância
de risos, de ruídos, 
desses desmandos com que me cruzo,
rua após rua, na voracidade
de um tempo sem contornos.


Se a cidade não é mais do que este enfeite
com que os possidentes se convencem,
enquanto desenham seu desnorte
e as sobras apodrecem nos intervalos da fome.
Então, não é cidade nem é nada,
mas rumo sem glória nem meta;
estação inacabada 
vereda incompleta.
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 Mateus, Victor Oliveira. Regreso a Salamanca, Antología en homenaje a Gabriel y Galán. Salamanca: Edifsa, 2020, p 84 (Selección y notas de Alfredo Pérez Alencart).
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domingo, 15 de novembro de 2020


                                                  Donald Winnicott (1896/04/07-1971/01/25)


    A propósito dos cuidados maternos, torna-se essencial evocar a contribuição de Winnicott, que foi um excelente observador das relações precoces mãe-bebé. Para este pedopsiquiatra inglês, existem três funções maternas, indispensáveis para o desenvolvimento harmonioso da criança.

- A presença materna no momento adequado oferece à criança a ilusão de experimentar que é ela que é capaz, na sua omnipotência, de dar existência à sua mãe, que surge no momento oportuno, quando ela tem necessidade. Há, então, esta impressão que ela criou o objeto. Diz-se que ela fez a experiência da omnipotência criadora ou alucinatória que consiste em fazer aparecer a sua mãe quando a criança dela tem necessidade. É aquilo a que Winnicott chama a "presentificação do objeto" (object-presenting).

- A mãe sustenta a criança através dos cuidados maternos e tem um papel de para-excitação. Ela tempera as excitações cuja intensidade demasiado importante ultrapassariam as capacidades da criança de lhe fazer face. Esta função é fundamental no desenvolvimento do eu. A integração do eu está associada ao desenvolvimento sensório-motor e à capacidade de criança em reconhecer aquilo que sente: fome, sede, frio, desconforto. Desta integração deriva a aquisição do "eu". Esta capacidade em controlar-se é designada por holding por Winnicott.

- Os cuidados prodigalizados à criança participam na capacidade desta integrar os seus limites corporais e, por consequência, ter noção da sua interioridade.  (...) a manipulação física do bebé - handling - intervém na personalização.

   Graças ao holding (...) e ao handling (...). A criança adquire o sentimento de habitar o seu corpo. (...) A criança relaxa pouco a pouco o seu lado fusional sem precisar de conhecer angústias insuportáveis devidas à perda brutal do holding e do handing. E, mesmo quando sente sentimentos de cólera pela ausência da mãe, a criança é já capaz de manter nela uma representação da mãe.

  É a isto que Winnicott chama a mãe suficientemente boa, que ele define como aquela que é capaz de aceitar que a sua criança viva as primeiras frustrações que irão estruturar o seu desejo graças à falta que ela vivenciará como motor. Essa mãe não será nem ausente em demasia, mas também não demasiado possessiva ou invasora. Ela aceita que a sua criança se diferencie dela e aceda à emergência do desejo. Uma resposta caótica, desordenada ou imprevisível às necessidades da criança pode ter um valor de ingerência ou de negligência e dará à sua construção do mundo um caráter fragmentado. O que pode, também aí, favorecer a eclosão duma estruturação perversa a título defensivo para evitar uma fragmentação psicótica da criança.

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 Barbier, Dominique. La Fabrique de l'homme pervers. Paris: Odile Jacob, 2017, pp 85-87 (Tradução de Victor Oliveira Mateus).

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sexta-feira, 13 de novembro de 2020


   Num perverso, a integração da lei e o seu corolário, o interdito, não são significantes. O não não tem sentido para ele. É o que explica que o perverso queira tudo, inteiramente tudo e imediatamente. A castração e a frustração não funcionam com ele; ele mantém-se em evitamento dessas duas noções que são fundamentais a toda a vida social (...). O perverso tem decisões firmes relativamente ao seu prazer e ao seu gozo pessoal, que ele esconde, num primeiro momento, já que ele despreza aquele que não é objeto do seu prazer. O que nos leva a pensar que é possível, neste ponto em que estamos da nossa reflexão,  propor uma segunda hipótese: o perverso é incapaz de amor ou não tem muita capacidade de amar o outro. A sua oblatividade está enfraquecida, ele não pode projetar num outro suficientemente qualidades que pudessem tornar esse outro amável aos seus olhos.
   A leitura muito negra da existência que o perverso narcísico tem deixa supor que uma forte espera durante o seu desenvolvimento nunca chegou a ser atendida ou que algo se quebrou dentro dele, parando assim um processo que poderia ter sido mais harmonioso num investimento no mundo e no outro. A relação objetal do perverso parou a meio caminho antes de conseguir integrar que pode existir algo de belo e de bom no outro. Ora é esse movimento que induz o respeito pelo outro.
   Se o perverso narcísico não consegue projetar qualidades no outro, é porque, sem dúvida, no mais fundo de si ele se detesta, o que conduz a um profundo nó depressivo não elaborado e a uma convicção quase delirante de que não existe nada de bom neste baixo mundo. O perverso narcísico parece não ter nenhuma capacidade de positivar. Nó depressivo profundo, incapacidade de positivar, convicção quase delirante: eis-nos próximos da psicose. (...) o perverso é aquele que tenta escapar à psicose, hipótese que abre pistas terapêuticas onde a moralização e o ajuizar, que não têm qualquer efeito sobre este tipo de indivíduos, não devem ter lugar. Esta hipótese implica que o perverso não tem um suficiente conhecimento da existência do outro, daquilo que esse outro pode fazer ou não fazer. O mundo exterior surge-lhe vacilante, apenas contam o seu prazer pessoal e o seu gozo, mas a organização perversa é muito rígida...
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 Barbier, Dominique. La Fabrique de l'homme pervers. Paris: Odile Jacob, 2017, pp 68-71 (Tradução de Victor Oliveira Mateus).
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terça-feira, 3 de novembro de 2020

 

Poemas de Ángela Gentile traduzidos por Victor Oliveira Mateus, que constam do livro Madrás/ Madras (Editora Labirinto, 2020) podem ser lidos na Página Tiberíades.

Ver aqui: http://tiberiades.org/?p=3939&fbclid=IwAR2Llm0tDcfaAQPcJNMyUvoaeCGF9XMngf7LG7muY-N53QQRBESulHujjdY

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