domingo, 29 de setembro de 2019


                            Duas fotografias



Uma fila de meninos na linha d’água.
Uma onda deixou-lhes à volta dos pés
um enrugamento de reflexos.
Parecem felizes. Ousados mesmo!
Apenas um, o segundo a contar da direita,
prende o meu olhar: parece-me assustado,
frágil, as mãos – cruzadas à frente - seguram algo
que não identifico, enquanto os cabelos,
luminosos, não lhe disfarçam o esgar do medo.


A outra é posterior (talvez uns 15 anos depois):
parte de uma cabeça debruçada sobre uma cidade
do sul da Europa, contudo, reconheço os olhos,
os mesmos daquele menino, que, um dia,
se começou a perder numa praia qualquer,
perante a indiferença do mundo e a inépcia
dos seus.  Os olhos, agora baços e virados para dentro,
estão quase mortos, entre uma barba de 2 dias
e um boné de marca, como convém àquela idade.


Que teria acontecido entre a primeira
e a segunda fotografia? Em que local
se avolumou o desacerto? Quem não acudiu
àquela ferida: pungente, extrema?
Perguntas que hoje me adensam a culpa,
aqui, bem no centro do poema.
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 Mateus, Victor Oliveira. Gazeta de Poesia Inédita https://gazetadepoesiainedita.blogs.sapo.pt/victor-oliveira-mateus-duas-131415 ), 2019/9/29.

Comemora-se este ano o centenário do nascimento daquela que é uma das maiores poetisas da América hispânica - Eunice Odio. De entre as várias iniciativas levadas a cabo em diversos países, acaba de sair a Antologia Voces y Fuego, onde poetas de muitas partes do globo traduziram para as suas línguas um poema de E.O., segue a tradução portuguesa que consta nessa obra.
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                  Poema Primeiro (Possessão em sonho)




Vem
Amado



Provar-te-ei com alegria.
Sonhar-te-ei comigo esta noite.



O teu corpo terminará
onde começa para mim
o tempo da tua fertilidade e da tua ansiedade;
e porque estamos repletos de tristeza
meu amor por ti nasce junto ao teu peito,
é que te amo em princípio por tua boca.



Vem
Comeremos no local da minha alma.



Antes que eu te abra o meu corpo
como um mar abundante e dedicado
até ao crepúsculo dos peixes.



Porque tu és belo,
irmão meu,
eterno meu dulcíssimo.



A tua cintura onde resplandece o dia
enchendo com o seu perfume todas as coisas,
a tua decisão de amar,
de súbito,
desagua inesperada em minha alma.



O teu sexo matinal
em que repousa a orla do mundo
e se dilata.



Vem



Provar-te-ei com alegria.


Punhado de lâmpadas será a meus pés tua voz.



Falaremos do teu corpo
com uma alegria puríssima,
como meninos despertos a cujo tremor
mal passou despercebido, outro menino,
e desnudada sua incipiente chegada,
e conhecida em sua idade futura, total, sem diâmetro,
na sua corrente genital mais próxima,
sem forma, na mais profunda solidão.



Vem
provar-te-ei com alegria



Tu sonharás comigo esta noite,
e enlaçarás aromas caídos de nossas bocas.



Povoar-te-ei de cotovias e semanas
eternamente nuas e obscuras.


  Eunice Odio in "Territorio de Voces y Fuego, Homenaje a Eunice Odio". Costa Rica: Editorial Estucurú, 2019 (Tradução de Victor Oliveira Mateus).
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quinta-feira, 26 de setembro de 2019



                 Amanhã

Hoje nada aconteceu por entre nuvens.
Um dia sem riscos e sem felicidade
acaba de morrer.
Hoje houve sombras no jardim,
os livros secaram sem serem necessários,
e as ruínas suspenderam a vida por um dia.
Não houve abismo nem olhares, nem prata
nem cobiça. Nada
atravessou as horas que foram pesando no relógio.
Nada riu, nada chorou. Nem a surpresa da carne
sempiterna.
Amanhã, disseram, amanhã será talvez.


  Pires, Isabel Cristina. Deserto Pintado. Lisboa: Editorial Caminho, 2007, p 77.
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quarta-feira, 25 de setembro de 2019


              A terra-de-ninguém

Estou neste lodo de amar quem me não ama.

Como se passa para o outro lado da armadilha?
Como morre o amor a sua morte?
Quem pára a fábrica de oiro das estrelas?


  Pires, Isabel Cristina. Deserto Pintado. Lisboa: Editorial Caminho, 2007, p 32.
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domingo, 22 de setembro de 2019



                     A Inveja como uma das Belas Artes

   Se uma mentira não é suficiente para caraterizar um mitómano ou sequer um mentiroso, do mesmo modo um momento de inveja não chega para revelar um invejoso. A perturbação invejosa enforma de dados aspetos que a individuam e a distinguem das outras perturbações da personalidade. Numa primeira abordagem, podemos afirmar que o invejoso partilha com o sociopata, com o perverso narcísico e com o falso-self o facto de todos derivarem da aprendizagem e do adquirido, ao contrário do psicopata que releva da ordem do inato, contudo, quer uns quer outro são altamente resistentes a qualquer tipo de terapia. As experiências feitas, nos últimos anos, com crianças psicopatas têm revelado resultados altamente desencorajadores, aliás, como é que se trata uma perturbação da personalidade? Não se trata! Quanto muito estabelecem-se alguns parâmetros, nem que sejam intimidatórios, para se conseguir uma conformidade mínima com o meio, são conhecidos, por exemplo, o horror à perda da imagem e à justiça que algumas destas perturbações têm. Um segundo aspeto da perturbação invejosa é que ela apenas ocorre no território da semelhança: o motorista inveja o motorista, o poeta inveja o poeta, o desenhador inveja o desenhador. É evidente que um motorista pode invejar um advogado que tem uma luxuosa moradia, um automóvel topo de gama, que passa sistematicamente férias nos mais luxuosos lugares, mas, para que essa inveja ocorra houve um deslocamento do invejoso para a esfera do económico onde o invejado circula e eis-nos de novo no território da semelhança. Um terceiro aspeto tem a ver com a relação pulsão-ação - o invejoso é alguém que sabe esperar: sendo as suas armas preferidas o boato, o ardil e mecanismos afins, o invejoso precisa de tempo para montar a sua teia contra o invejado ao contrário do psicopata, que, precisando de se libertar quanto antes da sua tensão interior, tem na ação a boia súbita para a sua autorregulação (Cf. Albert Eiguer, “Pequeno Tratados das Perversões Morais”, Lisboa, Climepsi, 1999). O invejoso não é só alguém que sabe esperar, como é também alguém cuja capciosa manipulação do discurso é mais difícil de desmontar, porque mais subtil e mais bem encenada: o invejoso é um artista da representação, acima mesmo do charme encantatório do perverso narcísico ou do atabalhoamento do discurso do psicopata que não consegue resistir a uma pressão demasiado forte e duradora (Cf. todos os trabalhos de Robert Hare sobre o discurso dos psicopatas). Estamos, pois, longe do retrato clássico do invejoso: lábio inferior retesado ou quase inexistente, olhar afunilado sobre a presa, malares repuxados e tensos… O invejoso “atualizou-se”: é afável, parcimonioso ou expansivo é simpático, circula afavelmente nos seus diversos grupos: não é só ele que é um artista, é a inveja que se tornou uma das Belas Artes e eis a quarta caraterística da perturbação invejosa: a compulsiva necessidade de menorizar o outro. Quando Vitor Frankl, preso num campo de concentração e sujeito às mais hediondas condições de subsistência, diz invejar os prisioneiros que apresentam uma peça mais de vestuário, não estamos perante uma personalidade invejosa, mas ante um desejo circunstancial não submetido ao ciclo da repetibilidade; quando Cioran diz que inveja e despreza todo aquele que tendo “alcançado a sua medida” quer ainda ultrapassar-se (Cf. Cahiers, p 89), estamos nitidamente perante uma manifestação de desprezo e nada mais. A perturbação invejosa pode antes ser encontrada em muitas outras obras, veja-se, por exemplo, a magistral descrição do relacionamento do capitão Monti com o tenente Angustina (In “O deserto dos Tátaros” de Dino Buzzati, Marcador, pp 142-148). Um quinto aspeto, prende-se exatamente com o desejo que o invejoso tem na menorização, ou até mesmo na implacável destruição, do outro: o invejoso observa, espia mesmo, corrói, espalha subtilmente o boato – sua arma preferida – conspira, enfim, tudo o que possa conduzir à eliminação do invejado, e aqui a inveja distingue-se da admiração já que nesta visa-se sempre o engrandecimento do outro, o que admira só se sacia quando os seus ídolos se engrandecem, ou seja, é precisamente o percurso oposto da inveja. Numa penúltima caraterística, poder-se-á dizer que a inveja é uma paixão  que circula simultaneamente no território da ética e do conhecimento: o invejoso tem um deturpado conhecimento de si, apreende-se como “maior, mais grandioso, mais valioso” do que na realidade é, e a esta cognição errada virá corresponder o sentimento de se sentir injustiçado: a sociedade, ou o agrupamento social em que se insere, “deve-lhe algo que se recusa a entregar-lhe e que anda a esbanjar com outro(s) que ele sabe inferior(es) a si”: urge, pois, apurar a vingança! Torná-la uma arte, uma das Belas Artes. Por fim, e num sétimo ponto, diremos tão-só que estando a inveja relacionada com o adquirido e com a aprendizagem, ela varia na relação direta da competitividade dos grupos e das sociedades, dito de outro modo: o inveja proliferará onde a competição aumentar e a cooperação diminuir.
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© Victor Oliveira Mateus (Inédito)
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quinta-feira, 12 de setembro de 2019


               Arte poetica 2




Non posso dimenticare di creare altri venti profili
falsi. Devo caratterizzarli in modo diverso
e con specifici tic linguistici. Non posso
dimenticar di aumentare il numero di seguaci.
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Uno dei veri falsi deve essere controverso
almeno una volta alla settimana. È urgente
uno scandalo settimanale, quindi questa gloria,
anche si accellera, non cade al dio darà.
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Non posso dimenticare di evitare di prendere
di trasgredire il sociale, il metafisico
di pacchetto, a collegamenti bric e brac.
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Rete benedetta che hai fatto così tanto per me!
Miracolo che mi protegge giorno e notte.
Le poesie? Ah, le poesie! L'avevo quasi dimenticato.
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 Mateus, Victor Oliveira. Aquilo que não tem nome. S/c.: Coisas de Ler Edições, 2018, p   (Tradução de Stefania Di Leo).
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                  Arte poetica 1





Percorri una strada i cui segni e incroci
decifri con schede e codici che non conosci.
C'è una leggera brezza sul tuo viso.
Cerchi la ragione di questa freschezza, il respiro,
di questa camera vuota dove germina
tutto ciò che si interrompe nel ciclo del tempo.
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Percorri una strada non asfaltata quando guidi
da altre macchine, dalle corna, dal rumore
dai passanti che affiancano il tuo cammino.
Ti dicono che la brezza viene dalla tua finestra, che,
francamente non chiuderai. La tua finestra:
inizio della tua nudità, del tuo distacco!
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Non ne sei sicuro. Non ce l'hai nemmeno
Ti mette a disagio. Insisti a non chiudere la finestra,
questa ardesia scarabocchiata, questo amalgama di visioni
che ti abbaglia e ti fa perdere. Ma, vedi
bene cos'è questa cosa che si dice con le parole
che non ti appartiene e non capisci nemmeno?
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Mateus, Victor Oliveira. Aquilo que não tem nome. S/c.: Coisas de Ler Edições, 2018, p    (Tradução de Stefania Di Leo).
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quarta-feira, 11 de setembro de 2019

O FESTIVAL DE OVAR DESTE ANO SERÁ DEDICADO À POESIA DE SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN.
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              Antínoo


Sob o peso nocturno dos cabelos
Ou sob a lua diurna do teu ombro
Procurei a ordem intacta do mundo
A palavra não ouvida

Longamente sob o fogo ou sob o vidro
Procurei no teu rosto
A revelação dos deuses que não sei

Porém passaste através de mim
Como passamos através da sombra


  Andresen, Sophia de Mello Breyner. Obra Poética III. S/c.: Editorial Caminho, 2001, p 67.
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