domingo, 31 de maio de 2020


como é íngreme
a paisagem da sede
sobre a memória
das rosas iluminadas
pelo rubor das mãos

as mesmas

as que agora suportam
o descomunal aperto
do corpo
cercado pelo gume
dos ponteiros

resta-nos
o esquecimento
do que fomos

insubmissas aves

tocaremos ainda
o último acorde
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 Almeida, Ângela. Estado de Emergência. Santa Maria: Confraria do Silêncio, 2020, p 23.
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sábado, 30 de maio de 2020


A raiz das árvores está cercada por urtigas de plástico,
a junta de freguesia cavou-lhes nervuras, manualmente,
queimaram a vegetação insurrecta com um fósforo de cera,
O dono do café fechou a esplanada,
a árvore pública passou a ser privada de água,
quase os cães já não lhe mijam,
foram extintas as flautas de pã dos amoladores de bairro
já sem melodia, sem furos e sem vento.
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  Ferra, António. ente. Lisboa: Edição do Autor, 2020.
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segunda-feira, 25 de maio de 2020

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"Mádras/ Madras" livro bilingue de Ángela Gentile com versão portuguesa de Victor Oliveira Mateus (Editora Labirinto, coleção contramaré).
Já à venda!!!
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"Estrela Tambor" de Hugo Milhanas Machado (Editora Labirinto, coleção contramaré).
Já à venda!!!
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domingo, 24 de maio de 2020

segunda-feira, 18 de maio de 2020



A Editora mexicana Abismos colocou já à venda o livro Aquello que no tiene nombre. A dita obra poderá ser encontrada nas redes sociais: Facebook, Instagram e Twitter, bem como em dadas plataformas como a amazon.
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sábado, 16 de maio de 2020


Falou nesse palácio mas só rei
terna passagem nos navios
que nos faz bem fora de nós
seguir o macio desses sossegos


A segunda terra já depende do salto
mas depois é toda ela balão em luz batido
e madeira pisada naquele lugar
o estranhamento neste novo passo começado


Esse vai ser o meu navio presidente
parece tanto o grosso silêncio dos minutos
embala lento desvia a luz e
lá em casa armando o viajante


   Machado, Hugo Milhanas. Supertubos, Poemas 2005-2015. Lisboa: Enfermaria 6, 2015, p 88.
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sexta-feira, 15 de maio de 2020


Entusiasta contigo estoura a rua
e diz aquela vontade até ao fim
que juntos não é juntos somos manos
e a tábua amiga de um instrumento


É tão guloso aquele mexer africano
sacudindo limpo o corpo na gente
que palavra é palavra de lugar torto
e diz aquela vontade é o sal é o sul


quem não queria tudo assim sozinho
e ruas onde de repente de novo somos
maratona e limo o pisar por aí abaixo e
um rio devagar de um falar devagar
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Machado, Hugo Milhanas. Supertubos, Poemas 2005-2015.  Lisboa: Enfermaria 6, 2015, p 26.
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quarta-feira, 6 de maio de 2020

Celebrou-se ontem, dia 5 de maio de 2020, o DMLP - Dia Mundial da Língua Portuguesa. As ditas celebrações, devido à Pandemia do Covid-19, ocorreram, por screaming, em várias plataformas. Agradeço ao escritor brasileiro David Oscar Vaz o convite para estar presente na plataforma Flipgrid, em cujo espaço participaram dezenas de figuras dos vários países de expressão oficial portuguesa, das quais refiro apenas: o Embaixador de Portugal na Unesco, António Sampaio da Nóvoa; a poeta e ensaísta brasileira e atualmente Professora na Universidade italiana de Peruggia, Vera Lúcia  Oliveira; os escritores brasileiros Marina Colasanti, Luiz Rufato, David Oscar Vaz; o escritor angolano Lopito Feijó, a escritora portuguesa Gabriela Ruivo Trindade, etc., etc. Segue o meu texto alusivo ao Dia e lido no referido evento:
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Defende uma dada corrente filosófica que a Língua, enquanto solo matricial, condiciona de forma necessária dadas formas de sentir e de pensar. Talvez seja de aceitar a questão do condicionamento, mas apenas se o interpretarmos fora da questão de uma exclusividade e retirando-lhe a pretensão de possuir esquemas mentais não susceptíveis de serem encontrados em outras Línguas e em outros Pensares, como, por exemplo, a problemática da Saudade ou variantes de uma espiritualidade e mística de cariz nacionalista.
A Língua condiciona, de facto, a arquitetónica do Pensar e, consequentemente, do Saber, mas apenas se a este processo for acrescentado um certo dinamismo de convivência com o Diferente, bem como a importação de algo que desse Diferente é pertença. Ou seja: se não houver na contínua construção da Língua um único vetor proveniente:
a) desse Diferente - outras Línguas, códigos informáticos, estratégias de uma informação centralizada em poderes globalizantes, etc.
b) ou também se não existir apenas uma emanação, quase sagrada, que faria de uma Língua um dinamismo único tido por inconspurcado pelo diverso.
A Língua vive, pois, desse dialogismo entre o matricial e o constantemente importado, não devendo, contudo, este último ser imposto ao primeiro pelos mais diversos tipos de poder, mas assumido e sempre conversado com esse primeiro. É nesta Dialética que se tornam possíveis duas ocorrências:
I - a autenticidade da escuta de um dado enraizamento;
II - mas também a aceitação de eventuais processos de autonomização de dadas zonas dessa Língua Primeira.
A Língua é, por conseguinte, um território de tensão entre um enraizamento que, de uma forma ou de outra, acabará sempre por emergir num qualquer sussurro proveniente desse tal solo originário e matricial, mas também contém - mesmo que colocada como hipótese! - a autonomização futura de parte desse Si-próprio que se tornará num qualquer Diferente outro. E é isto que nos ensinam diferentes disciplinas como a Antropologia Cultural, a História da Cultura, etc.; e é isto também que se vai observando nas diversas variantes do português, como por exemplo a de Portugal e a do Brasil, onde vamos sempre constatando semelhanças e diferenças, e é por a Língua portuguesa ser esse território onde se joga o Mesmo e o Diferente, é por isso que ela é tão rica.
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                            Victor Oliveira Mateus (Lisboa, 4 de maio de 2020)
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sábado, 2 de maio de 2020


   O passado pode ser ou não um país estrangeiro. Pode se transformar ou permanecer o mesmo, mas sua capital vai ser o Arrependimento, e o que flui ao longo dela é um canal de desejos não concretizados que correm em direção a um arquipélago de pequenas possibilidades que nunca aconteceram de verdade, mas não são irreais por não terem acontecido e talvez ainda possam acontecer embora tenhamos medo de que nunca aconteçam. E pensei no Velho Inglês guardando tantas coisas, como todos guardamos quando olhamos para trás e vemos que as estradas que abandonamos ou que não pegamos desapareceram. O arrependimento é o modo como esperamos voltar para nossas vidas reais assim que encontramos a determinação, o impulso cego e a coragem de trocar a vida que nos foi dada pela vida que tem nosso nome e nenhum outro. O arrependimento é o modo como ansiamos por coisas que perdemos, mas nunca tivemos de verdade. O arrependimento é a esperança sem convicção, eu disse. Estamos divididos entre o arrependimento, que é o preço que pagamos pelas coisas que não fizemos, e o remorso, que é o preço que pagamos por fazê-las. Entre um e outro, o tempo se diverte com seus convidativos truques.
   - Os gregos nunca tiveram um deus do arrependimento - observou o marido de modo imperioso, para se exibir ou desviar uma conversa que claramente não era só sobre o Velho Inglês.
   - Os gregos eram brilhantes. Usavam uma única palavra tanto para o arrependimento quanto para o remorso. Como Maquiavel.
(...) Quando saímos do restaurante, ela e eu caminhamos na frente juntos, enquanto Manfred e o marido seguiam atrás.
   - Mas você está feliz? - perguntei.
(...)
   - Porque meu coração está acelerado agora e faz tempo. Todos aqueles anos, e isso não vai embora - confessei.
   Comecei a lembrar as palavras dela sobre amar alguém sem estar apaixonado (...) E, quanto mais eu pensava nisso, mais me rasgava por dentro. Perdemos anos de nossas vidas, eu queria dizer. Então disse.
   - Perdemos anos de nossas vidas... estamos vivendo a vida errada, você e eu. Tudo em nós está errado.
   - Isso não é justo. Nunca estivemos errados. Você e eu somos a única coisa certa em nossa vida... todo o restante é que está errado.
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 Aciman, André. Variações Enigma. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2018, pp 240-243.
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