sexta-feira, 30 de novembro de 2018



Mi ser es de silencio. En la quietud
del campo, solo, donde siempre,
debajo de las peñas, mantengo
la contemplación largo rato.
Sin más allá: vivir sintiendo
que la vida te pertenece
por completo, pararte a comprender
esa simpleza mientras te escucha,
largo rato, el silencio. Para volver
a congraciarse con el mundo.
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  Herrero, Fermín. Sin ir más lejos. Madrid: Ediciones Hiperión, 2016, p 54.
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quinta-feira, 29 de novembro de 2018



Peor fuera donde encontrar alivio.
No querría que el pájaro
de la hiedra cantase hoy
como acostumbra, sin ningún
recato. Que ofreciese de todas
todas lo que tengo. Ni tendré.
No voy a desgarrarme ahora, cuando
la tranquilidad se ha apoderado de la tarde
y si no fuese por las hojas en el suelo
y las plantas tronchadas, quién diría
la pedregada que cayó, aquel estruendo
que amedrentaba. En lo sombrío
una blancura de sudario permanece.
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  Herrero, Fermín. Sin ir más lejos. Madrid: Ediciones Hiperión, 2016, p 33.
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terça-feira, 27 de novembro de 2018


                       38.

Se tivesses uma mente de inverno,
compreenderias. Agora é tarde.

As aves vinham incendiar a primavera
e com ela as suas certezas.

A amizade com os intangíveis sinais da terra
era posta em causa. Uma coerência
era posta em causa.

Ou não eram as aves incendiárias.
O estímulo podia ser uma árvore dobrada pelo vento,
a extrema relação entre dois elementos
próximos, mas longínquos.

Celebra este muro.
O pretérito aquece-te os ossos,
regressa.
Celebra o que está para lá do muro:

um território não domesticado,
a mecânica dos exotismos,
a fonte de calor.

És, serás sempre, o herói civilizador,
e ignoras a minha fronteira,
o reflexo e a vontade do visível.
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Quintais, Luís. Agon. Porto: Assírio & Alvim, 2018, pp 48-49.
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domingo, 25 de novembro de 2018


Envelhecemos com uma vara
de medir o sol na linha do olhar.
Não entendemos os sinais inscritos
nas margens do abismo.
Nem os bosques onde se abrigam
as sombras e a chuva.
Nem a misteriosa relação dos astros
no lado mais silencioso dos céus.
Um surdo alvoroço ecoa, fúnebre, na paisagem
quando, para além das montanhas, o piar dos pássaros
é tão nítido como o sopro do medo que transtorna
a leve inclinação das planícies.
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 Pires, Graça. Uma vara de medir o sol. S/c.: Coisas de Ler Edições, 2018, p 59.
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Uma promessa na secreta aventura das sementes
e o cheiro dos pomares alastra sobre a sede
fendendo as bocas onde nascem as palavras
da desordem e da festa.
Quando as aves atravessam o gume do lume ateado
à prenhez dos trigos enrodilhamos no rosto
os traços da tristeza que nos arde no olhar.
Só o perfil alongado das árvores desafiando o sol
nos devolve a lembrança das cantigas à desgarrada,
na eira, quando a debulha do milho se fazia
com as nossas mãos predispostas a todos os afagos.
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 Pires, Graça. Uma vara de medir o sol. S/c.: Coisas de Ler Edições, 2018, p 31.
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sábado, 24 de novembro de 2018


   Gilles Deleuze (1925-1995) é também um autor que se preocupou em ler a pós-modernidade, contribuindo, em larga medida, para a sua sedimentação. Para começar, defende que a filosofia tem a sua origem numa relação directa com as artes, e ganha consistência na produção de conceitos a partir do novo, e não a partir das teorias já estabelecidas. Dito de outro modo, a filosofia pertence ao impensado, que habita os intervalos das relações entre o pensável e a própria arte, e as artes funcionam rigorosamente como o ponto de fuga do aprisionamento do pensamento em si mesmo. Na hierarquia das artes, o cinema surge como a própria "imagem" do pensamento, ou seja, demonstra o próprio acto de pensar a partir de uma noção de "sentido", anterior e irredutível ao próprio estabelecimento das gramáticas, dos códigos e das linguagens. Esta "lógica do sentido", remissível a uma "lógica da sensação", centrada numa noção complexa de "acontecimento", permite ultrapassar a cristalização do próprio significado das coisas em verdades ou proposições. A arte será, assim, aquilo que no seu "devir" antecede as próprias formas, aí se podendo captar as forças, a potência e o material inteligível que concitam e produzem os próprios conceitos de "eu" e de "nós", os quais são o resultado póstumo desse estado pré-subjectivo e "pré-linguístico".
   Neste contexto, a arte e o pensamento são essencialmente do domínio experimental, e não do domínio do juízo e das suas condições transcendentais, superando Deleuze as velhas máximas de que a arte é, na sua essência. comunicação, ou narrativa, mais ou menos determinadas historicamente. Na sua opinião, só a partir dessa condição experimental é que a arte pode gerar algo de novo, aí residindo a sua própria validação, isto é,  o que pode ser dito e visto na arte é uma produção do seu próprio processo, seja no que diz respeito à possibilidade múltipla e "rizomática" de significados, seja no que concerne à própria "produção" do sujeito.
   O conceito de "rizoma", aplicado a toda a realidade, implica a noção de rede, ou seja, um conjunto de linhas que permitem permanentes ligações entre os vários elementos, cuja interpretação, produzida a partir desse organismo, liberto de hierarquias, acaba por criar e reconfigurar permanentemente a realidade.
   Em colaboração com Guattari, Deleuze concebe ainda o capitalismo como um sistema esquizofrénico, cuja noção de indivíduo acabara por subalternizar todas as outras; deste modo, o indivíduo já não é concebido como um ponto referencial e hierarquizador de real, mas como uma máquina de desejo que luta pela sua total afirmação contra todas as imposições sociais e políticas. Este contributo pesará na problematização das questões relativas ao "género", enquanto construção cultural da própria identidade do indivíduo, por oposição à determinação natural do conceito de sexo, assim como na crítica a qualquer noção hegemónica de cultura.
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Pereira, José Carlos. O Valor da Arte. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2016, pp 39-40.
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quinta-feira, 22 de novembro de 2018


   Jacques Derrida (1930-2004) foi um dos autores que mais procurou desacreditar a noção clássica de verdade, defendendo que o sentido e o alcance de qualquer texto (leia-se igualmente: obra de arte ou objecto estético, que para o autor nada mais é do que um "traço") só pode ser encontrado nos jogos de linguagem que o precedem, e que consequentemente o geram e constroem, afastando, desde logo, qualquer referente externo à própria linguagem (concedida como um post-scriptum a si mesma), seja ele de natureza transcendente, transcultural ou tranhistórica. No seu pensamento, converge desde logo o pós-estruturalismo, corrente que se opõe ao racionalismo e ao cientismo, que o próprio Derrida engloba na noção de logocentrismo (centralidade do logos no pensamento ocidental), enquanto instância de verdade, à qual se afere predominantemente a tradição discursiva do ocidente; isto é, insurge-se contra a tradição  a partir da qual supostas noções metafísicas (Verdade, Beleza, Bondade) se apresentam, enquanto pretensos acontecimentos "originários", como a única fonte de validação prévia do discurso.
   À semelhança de Ferdinand Saussure (1857-1913), Derrida considera ainda que o homem é, essencialmente, um ser linguístico, mas, ao contrário do autor do Curso Geral de Linguística, recusa o carácter determinístico das estruturas universais da língua, ou seja, por um lado, o signo não tem relação com referentes exteriores a si mesmo, isto é, com uma realidade pré-existente, sendo apenas interpretável na relação com os outros signos; por outro, o significado encontra-se em permanente recomposição, fruto do referido carácter indeterminado da língua, o que implica necessariamente uma leitura "descontrutivista" de todos os significados que tendam a imperializar ou sequestrar a interpretação, inscrevendo-se nessa dupla matriz a dimensão pós-modernista, que caracteriza  o seu legado.
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  Pereira, José Carlos. O Valor da Arte. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2016, pp 37-38.
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quarta-feira, 21 de novembro de 2018


             Amar a un conejo


Te dieron un conejo.
Te dejaron amarlo
sin haberte explicado
que es inútil amar
lo que te ignora.
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  Vitale, Ida. Cerca de cien, Antología poética. Madrid: Visor Libros, 2015, p 207.
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segunda-feira, 19 de novembro de 2018


       Pájaro

Lejos un tren va borrascoso
despidiendo un sonido muerto,
unas voces turban el aire,
un ladrido, solo, se muerde.

Pero el pájaro canta y todo
lo que no es pájaro refluye.
Pájaro-río, luz-dendrita,
luz oral, parcela preciosa,

dueño de su tiempo en el tiempo,
toda gloria su menudencia.
Existo más si este capullo
su seda sonora devana.

  Vitale, Ida. Cerca de cien, Antología poética. Madrid: Visor Libros, 2015, p 131.
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domingo, 18 de novembro de 2018


      Impaciencia


Qué aguardo junto a esta puerta
a la que nadie va a llamar?
La esperanza no me lo dice;
la vida sigue su pasar,
rápida como una nube
si la tormenta estallará.
Voces oídas no las oigo.
manos ceñidas ya no están;
labio de amigo, amor amigo,
también debieron despertar
de ser un sueño. Entonces pido
que todo vuelva a comenzar.
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 Vitale, Ida. Cerca de cien, Antología poética. Madrid: Visor Libros, 2015, p 39.
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sexta-feira, 16 de novembro de 2018


   Lamento de Porfírio ante o túmulo do mestre


Tem o amor tantos nomes e modos
de exacerbar a vontade, que em mim
sempre foi fraca, apenas instigada
pela ânsia de um saber que derramavas
no incipiente vaso que sempre fui.

Quando te ouvia lembrava a cidade
da minha infância, essa Tiro arrasada
por Alexandre, onde cedros, carvalhos
e o rondar dos lobos entorpeciam
a alma, como se um restauro fosse possível.

Quando te ouvia era a minha solidão
que falava, por nos saber evanescentes
no seio de uma unidade que fica,
como esta entrega às tuas palavras
e a uma esposa que sempre me partilhou.

Tem o amor tantos nomes e modos
que engrandecem, aproximam, e nos elevam
para lá do céu azul e da música das esferas,
mas nenhum consegue dizer o que de ti foi grandeza
nesta tristeza em que estás e esperas.
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  Mateus, Victor Oliveira. Aquilo que não tem nome. S/c.: Coisas de Ler Edições, 2018, p 59.
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   Poema da espera inútil

Depois de ti
todas as ruas ficaram vazias
e as casas entregaram-se
à humidade de um tempo sem destino.

Depois de ti
as árvores encarquilharam,
enquanto os pássaros, alucinados,
faziam os ninhos nas chaminés armadilhadas.

Nada se manteve como antes
na insalubre rotina dos homens
tão à deriva e sôfregos.

Apenas eu
para ali fiquei,
tal como no primeiro dia,
cicatriz entranhada
em sua espera inútil.
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 Mateus, Victor Oliveira. Aquilo que não tem nome. S/c.: Coisas de Ler Edições, 2018, p 27.
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             Ritual

Pouso a maçã sobre a mesa.
Uma mesa minúscula
entre o lambril e um monte de livros.

Desço a veneziana quase até abaixo,
para que a penumbra
se coadune com o silêncio.

Uma lâmpada de halogéneo
assoma por detrás
de uma das estantes
perto da janela.

Do interior da casa
nem o ruído dos canos,
nem o estalido dos móveis.

Tudo está no seu lugar devido
e o mundo está bem feito.

Deito-me, então,
no sofá do fundo
e começo a pensar em ti.
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 Mateus, Victor Oliveira. Aquilo que não tem nome. S/c.: Coisas de Ler Edições, 2018, p 26.
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   Desces o talude em direção ao rio, às águas onde o tempo é uma roca à espera dos elos que nunca tecerás e onde o júbilo, miragem intermitente de tantos, te concede essa nudez em que te vês e queres. Jamais alguém te devolverá o ruído da superfície, o vórtice daquelas canções, que, sem melodia, enfeitavam cicatrizes cuja origem nem sequer sabias. Desces para a frescura da margem. Encostas-te a um olmo. Esperas. Vendo bem, para nada te serviram os versos, as espinhosas dissertações, o capricho dos sentidos múltiplos. Sim, vendo bem, a felicidade é tão-só esta espera, esta serenidade entre uma árvore que te ampara e a leveza de um rio que te acena.
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 Mateus, Victor Oliveira Mateus. Aquilo que não tem nome. S/c.: Coisas de Ler Edições, 2018, p 16.
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Na sessão de apresentação do livro Aquilo que não tem nome (Coisas de Ler Edições, 2018) na Livraria Férin em Lisboa em 10/11/2018. Da esquerda para a direita: Graça Pires, Alberto Pereira, Amélia Vieira, João Rui de Sousa e Victor Oliveira Mateus.
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quinta-feira, 15 de novembro de 2018



Dicen que los primeros días de enero
son los más oscuros.

Mi abuelo me contaba que en su pueblo
habían inventado algunas
estrategias de fuego:
juntar las manos
con los vecinos
a la orilla de las palabras
que son como puertas
que borran todas las distancias.
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  Gatica, Marcelo. El Extramuro/ Valjaspool Muure (bilingue: espanhol/ estoniano). Tallinn: Kaanepilt Walter Isaac Mora Marambio (Izak One), 2018, 45.
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quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Me acerco un poco.
La frase "el fin de la historia" es un espejismo.
Busco solo la línea exacta con que dibujar
el horizonte de un nuevo minuto.
La esperanza permanece intacta,
cuando se abren los muros a la hora de la comida
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 Gatica, Marcelo. El Extramuro/ Valjaspool Muure (bilingue: espanhol/ estoniano). Tallinn: Kaanepilt Walter Isaac Mora Marambio (Izak One), 2018, p 11.
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segunda-feira, 5 de novembro de 2018

 

   Place de l'Odéon. Une femme me touche l'épaule. Elle doit joindre sa soeur, son télèphone est déchargé. Ses soixante ans parlent pour elle: je lui tends l'appareil. Elle ne sait pas comment ça marche. Elle préfère me dicter les chiffres. Son agenda en main, la femme s'interrompt: "Vous avez l'air triste, jeune homme." Je dis: "Mélancolique, peut-être. - Rien de grave j'espère?- Est-ce que l'amour est grave? - Vous avez rompu avec une fiancée?- Quelque chose comme ça." Silence. La femme reprend la parole: " Vous savez, une amie me disait ces mots voilà quelques jours: j'ai quitté trois fois mon mari. Je ne le supportais plus. Puis un jour j'ai retrouvé la pierre précieuse. Quand on aime quelqu'un, on a aimé sa pierre précieuse. L'éclat se ternit avec le temps. Elle s'oxyde, ou quelque chose comme ça. Mais il ne faut pas oublier la pierre précieuse que l'on a vue un jour."  
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 Dreyfus, Arthur. Histoire de ma sexualité. Paris: Éditions Gallimard, 2014, p 233.
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domingo, 4 de novembro de 2018

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                               A Morte do Poeta
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Se quiseres matar o poeta
não lhe abras brigas, questiúnculas,
polémicas na praça pública.
Se o quiseres, de facto, bem morto
sê seu amigo.
Seu muito amigo mesmo!
Escuta-lhe os desejos, as dúvidas,
os voos, por mais insignificantes
que te pareçam.
Se acaso ele necessitar, apresenta-lhe
até um livro em local de prestígio,
depois, em farsa bem encenada,
deixa escapar para os pares
que o livro não prestava,
mas não podias fazer de outro modo
já que és seu muito amigo.
Se quiseres matar o poeta
tece-lhe elogios nas redes sociais,
bem à frente de todos,
enquanto em mensagens in box
o vais apelidando de parco
de inteligência e fraquinho de estilo.
( O termo fraquinho costuma funcionar,
mas se alguém se te opuser poderás sempre
substitui-lo por um léxico mais brando,
mais brando mas igualmente eficaz,
algo como: irregular, de arte dúbia…).
Se quiseres matar o poeta
sê diligente, corrosivo, irónico
junto de críticos, dos editores, produtores
televisivos e o mais que possa surgir.
Por fim, quando o vires desfeito,
coloca-lhe o braço sobre os ombros
e queixa-te das injustiças do mundo,
contudo, e pelo sim pelo não,
certifica-te se da tumba não regressa.
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©  Victor Oliveira Mateus (Inédito).
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                                         Desencontros


   Sexta-feira. Horas? Talvez umas quinze, não sei! Mas que importância tem o tempo, quando tudo é rápido, voraz e sem consistência? Sexta-feira. Local? Talvez Avenida de Berna, não sei! Mas que importância tem o espaço, quando tudo é amorfo, desconchavada rotina e as pessoas teimam seu pouco a fingir de muito com enfeites de luzes e risos postiços? Caminhas. Agora sem a exibição das marcas, do júbilo nos cenários resplandecentes, sem uma qualquer ousadia que te transporte e salve, mas tão-só o olhar perdido, uma mala enorme, o cabelo revolto, a barba por fazer. Caminhas (agora sim!) com aquele resplendor só acessível aos que na cidade-loba resistem e que, malgrado os desencontros, nas dobras do tédio insistem. Caminhas de tal modo perdido e ausente, que nem vês o táxi parado, comigo na tua frente.
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© Victor Oliveira Mateus (Inédito).
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sábado, 3 de novembro de 2018

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 O Sítio "Casal das Letras" de Maria Augusta Silva e Pedro Foyos publicou hoje o meu ensaio Velhice: Máscaras e Univocidade, que no início do próximo ano surgirá numa Revista em papel.
Aqui:  http://www.casaldasletras.com/colaboradores_analise.html?fbclid=IwAR159rstbHObKgJ4tlI82k7hyfLVYXGp_LFC1c04K4yX9s2g2uGiDMKtUy0

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   Gosto das pessoas que arrastam dentro de si a vida com uma complacência rara, enquanto lhes vão caindo das algibeiras sementes que ninguém agarra. Gosto das pessoas que se fazem de vítimas, porque, na realidade, são-no e isso lhes pesa demasiado. Gosto igualmente das outras: as que também são vítimas, mas que há muito perderam o mundo na volatilidade das esperas. Gosto das pessoas que sabem distinguir o agora, sempre frenético e engolidor de almas, do instante sempre único, irredutível e, muitas vezes, eternizável. Gosto das pessoas que me olham nas bichas do supermercado como quem pede socorro. Gosto dos que caminham: serenos, indiferentes, à margem. Gosto daqueles a quem a angústia os faz sugar-me por dentro e a quem, por vezes, grito de cansaço, mas que no dia seguinte de novo ancoram em mim com uma fidelidade imensa e a sua perda irresolúvel. Gosto dos que preferem a penumbra ao exposto, os rituais e a sedução à voragem assassina do consumível. Gosto dos que, temerosos e não se querendo dispersar na massa indiferenciada, preferem ocultar-se e fugir daquilo que seguramente os devoraria. Gosto dos que fogem da exposição gratuita, da palavra vazia, da encenação ao rés de uma realidade amorfa e privada de qualquer resquício de espiritualidade ou reflexão, ou qualquer outro termo similar que prefiram. Gosto dos que há muito deixaram de correr para ficar em primeiro lugar, e, se acaso algo de semelhante lhes acontece, eles colhem-no com a sabedoria calma de quem se sabe de passagem e de que tudo vale muito pouco, ante o mistério tremendo do ter vindo à vida. Gosto dos melancólicos, dos angustiados, dos que sabem que jamais encaixarão na barbárie que todos os dias os vai cercando. Gosto dos náufragos que me olham naquela cumplicidade fraterna de quem sabe que nenhum porto existe. Enfim, gosto daqueles de quem todos fogem, mas que para mim foram sempre os mais fiéis e os mais estimados.
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© Victor Oliveira Mateus (Inédito).
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