sábado, 3 de novembro de 2018

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   Gosto das pessoas que arrastam dentro de si a vida com uma complacência rara, enquanto lhes vão caindo das algibeiras sementes que ninguém agarra. Gosto das pessoas que se fazem de vítimas, porque, na realidade, são-no e isso lhes pesa demasiado. Gosto igualmente das outras: as que também são vítimas, mas que há muito perderam o mundo na volatilidade das esperas. Gosto das pessoas que sabem distinguir o agora, sempre frenético e engolidor de almas, do instante sempre único, irredutível e, muitas vezes, eternizável. Gosto das pessoas que me olham nas bichas do supermercado como quem pede socorro. Gosto dos que caminham: serenos, indiferentes, à margem. Gosto daqueles a quem a angústia os faz sugar-me por dentro e a quem, por vezes, grito de cansaço, mas que no dia seguinte de novo ancoram em mim com uma fidelidade imensa e a sua perda irresolúvel. Gosto dos que preferem a penumbra ao exposto, os rituais e a sedução à voragem assassina do consumível. Gosto dos que, temerosos e não se querendo dispersar na massa indiferenciada, preferem ocultar-se e fugir daquilo que seguramente os devoraria. Gosto dos que fogem da exposição gratuita, da palavra vazia, da encenação ao rés de uma realidade amorfa e privada de qualquer resquício de espiritualidade ou reflexão, ou qualquer outro termo similar que prefiram. Gosto dos que há muito deixaram de correr para ficar em primeiro lugar, e, se acaso algo de semelhante lhes acontece, eles colhem-no com a sabedoria calma de quem se sabe de passagem e de que tudo vale muito pouco, ante o mistério tremendo do ter vindo à vida. Gosto dos melancólicos, dos angustiados, dos que sabem que jamais encaixarão na barbárie que todos os dias os vai cercando. Gosto dos náufragos que me olham naquela cumplicidade fraterna de quem sabe que nenhum porto existe. Enfim, gosto daqueles de quem todos fogem, mas que para mim foram sempre os mais fiéis e os mais estimados.
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© Victor Oliveira Mateus (Inédito).
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