quarta-feira, 31 de agosto de 2022


Face a outro ser humano os nossos comportamentos definem-se.

Gerião estava surpreendido consigo mesmo. Agora via Héracles quase todos os dias.
O instante natural
formando-se entre os dois drenou cada gota das paredes da sua vida
deixando para trás apenas fantasmas
farfalhando como um velho mapa. Não tinha nada a dizer a ninguém.
Sentia-se solto e brilhante.
Ardia na presença da mãe.
Já quase nem te conheço, disse ela encostada à porta do quarto dele.
(...)
O amor não
me tornou gentil ou bondoso, pensou Gerião enquanto ele e a sua mãe se olhavam
a partir de cantos opostos da luz.
Ele enchia os bolsos com dinheiro, chaves, rolos. Ela bateu levemente com o cigarro nas costas da mão.
(...)
A que horas voltas para casa? Perguntou ela. Não muito tarde, respondeu.
Uma pura e ousada vontade de desaparecer invadiu-o.
Diz-me Gerião o que é que tu gostas neste rapaz nesse Héracles podes dizer-me?
Se te posso dizer, pensou Gerião.
Mil coisas que não podia contar passaram-lhe pela cabeça. Héracles sabe muito sobre arte. Temos boas conversas.
Ela olhava não para ele mas através dele à medida que colocava o cigarro por acender no bolso da frente da camisa..
"Como é que a distância se mostra?" é uma simples pergunta directa. Estende-se a partir de um interior sem espaço até ao limite
do que pode ser amado. Depende da luz. Acendo isso? disse ele tirando
a caixa de fósforos
dos jeans enquanto caminhava até ela. Não querido. Ela afastava-se.
Devia mesmo deixar isto.


  Anne Carson. Autobiografia do vermelho. S/c.: não (edições), 2020, pp 48-49 (Tradução de Ricardo Marques e João Concha).
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terça-feira, 30 de agosto de 2022


Estou sentada na
beira da cama
imparcial, transformei-me em cristal, tu entras

trazendo amor em forma de
uma caixa de cartão (vazia)
um bolso (vazio)
algumas mãos (também vazias)

Tem cuidado digo mas
como podes tu
     a coisa
vazia surge das tuas mãos, enche
o quarto lentamente, é uma
premência, uma ausência de
premência
     Como criatura do fundo
do mar com ossos de vidro e olhos
de bolacha trazida
à superfície, rompo-

-me, os pedaços de mim
brilham brevemente nas tuas mãos vazias


   Margaret Atwood. Políticas de poder. Lisboa: Relógio D' Água Editores, 2022, p 93 (Tradução de Ana Luísa Amaral).
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segunda-feira, 29 de agosto de 2022


        A voz poética não fidedigna


Não ouças o que eu digo; partiram-me o coração.
Não há nada que eu veja objetivamente.

Conheço-me a mim mesma; aprendi a escutar como um psiquiatra.
Quando falo apaixonadamente,
é quando sou menos de confiança.

Realmente é muito triste: toda a vida me elogiaram
pela minha inteligência, os meus poderes de lingagem, de perspicácia.
No fim, foram um desperdício -

Nunca me vejo,
de pé nos degraus da entrada, a dar a mão à minha irmã.
É por isso que não posso explicar
as nódoas negras no braço dela, onde termina a manga.

Dentro da minha mente, sou invisível: por isso sou perigosa.
As pessoas como eu, que parecem abnegadas,
somos nós as anormais, as mentirosas;
somos aquelas a quem se devia dar o desconto
a bem da verdade.

Quando me calo, é quando a verdade irrompe.
Um céu limpo, as nuvens como fibras brancas.
Por baixo, uma casinha cinzenta, com azáleas
de vermelho e rosa brilhante.

Para se ter a verdade, é preciso resguardarmo-nos
de ver a irmã mais velha, tapá-la;
quando se magoa assim uma coisa viva,
nos seus mais fundos mecanismos,
todas as funções se alteram.

É por isso que não sou de confiança.
Porque uma ferida no coração
é também uma ferida na mente.


   Louise Gluck. Ararate. Lisboa: Relógio D' Água Editores, 2021, pp 41-43 (Tradução de Margarida Vale de Gato).
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domingo, 14 de agosto de 2022


                    Clarão


Certas noites, quando sou o último
a sair da sala, gosto de fingir
que me esqueço de apagar a luz
e deixo a luz acesa toda a noite

     É claro que são mais uns quantos euros
     na conta da EDP ao fim do mês.
     Mas há coisas mais vastas do que o dinheiro,
     coisas que não é com euros que se medem.

Foi bom ter havido toda a noite
aquele clarão silencioso,
que, como o chicote na mão do domador,
espancou as trevas e as reenviou
para o sujo lugar donde tinham vindo.

Sim, uma vezes por outras, é aconselhável
esquecer-se a gente de apagar a luz,
e fazer assim com que a noite
não seja enormemente noite.
Fazer com que um sucedâneo do dia
se sobreponha à noite,
para não tropeçarmos nos escolhos
que fazem da noite aquele lugar de trevas,
perigos, ameaças, aflições.


    A. M. Pires Cabral. caderneta de lembranças. Lisboa: Tinta-da-China, 2021, p 10.
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quarta-feira, 10 de agosto de 2022


                Et nunc manet in te

Meu amor,
a casa está tão sozinha que
os pássaros vêm morrer lá dentro.
Nada mudou, mas falta
a mão para acariciar o gato
e acolher a ninhada secreta,
o sorriso que enchia o tanque
a fazia crescer a horta.

Já ninguém apanha as laranjas mais altas
ou usa a sombra da nogueira.
E até os ciprestes se tornaram redundantes
ao ponto de os abatermos:
a ausência diz-se melhor no esplendor
inútil das rosas sem esse olhar,
nas papoilas raras que duram
o tempo de uma fotografia.

Um dia, deixaremos também uma casa assim,
casulo abandonado a sobreviver-nos.
Um de nós escutará as asas ansiosas
na chaminé, antes de pousar o livro
e amparar o último pássaro.
Só parecerá menos triste
porque não teremos, então,
nada mais a perder.


  Inês Dias. Cerveja & Neve. Lisboa: Averno, 2020, pp 58-59.
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sábado, 6 de agosto de 2022

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 Ana Luísa Amaral, 1956/04/05 - 2022/08/05

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A Ana Luísa é uma das mais importantes vozes poéticas das últimas décadas. Como pessoa era de uma inteireza rara, de uma generosidade invulgar. Esta partida deixa em "nós", para além da saudade, um vazio difícil de preencher. Jamais esquecerei tantas gentilezas recebidas! Alguns dos seus poemas estão em Antologias e em Revistas que coordenei. Há pessoas, que, apesar de partirem fisicamente, ficam também - e sempre - dentro de nós.

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