domingo, 2 de novembro de 2025


 Recensão do mais recente romance de Éric Chacour:

Assisti, há uns anos, na extinta Livraria Bulhosa de Entre Campos, durante a apresentação de um livro de Eduardo Pitta, a uma discussão que, logo na altura, me pareceu interessante. A sala estava cheia. Na fila da frente sentava-se o Prof. Eugénio Lisboa com a mulher. A certa altura a discussão caiu na possibilidade de existência de uma “literatura gay”. Nos primeiros minutos a conversa não me arrebanhou e pensei: “Pronto, lá vem o malabarismo em torno do Uno e do Múltiplo: a literatura gay, a literatura feminina, a literatura masculina e o mais que seja…” Apesar do meu enfado inicial, acabei por prestar atenção ao debate: defendia o Eduardo que sim, que existia uma literatura gay,, contrapunha Eugénio Lisboa os perigos de uma tal rotulagem, e exemplificava com uma obra de Gore Vidal – e deu o título – enfatizando o facto de que um tal rótulo funcionaria como um ferrete afastando de uma importante obra um grande número de leitores. Para mim, já na altura perfeitamente cartesiano relativamente a este assunto: o que existia eram árvores cada uma delas com uma multiplicidade de ramos e não uma imensa floresta onda as árvores brincam à cabra-cega umas com as outras, portanto, para mim, repito, o debate interessava-me pouco, mas jamais o esqueci, porque me surpreendeu a posição de Eugénio Lisboa. Alguns anos mais tarde caiu-me nas mãos um texto desse autor sobre o romance contemporâneo, texto que corroborava a lucidez – e a acutilância – do dito senhor. Nesse texto, por entre as várias considerações, ele cindia o território do romance em dois campos: as obras que servem para serem lidas e as obras para serem estudadas. Apesar de uma ou outra discordância, foi Eugénio Lisboa que me levou a dizer algo sobre “Ce que je sais de toi”. Em primeiro lugar, refiro que este livro estabelece uma dialética entre as duas instâncias da dicotomia eugeniana: este livro, alheio a todo o malabarismo pseudo academizante, oferece-se ao leitor como algo para ser lido e, sem quaisquer hermenêuticas de faz de conta, apresenta-se igualmente sem qualquer razão impeditiva de poder ser estudado.
Este romance está dividido em três partes: Moi/Eu, Toi/tu, Nous/Nós. A linearidade da narração jamais cai na escrita fragmentária ou nessa coisa vulgarmente designada por escrita de fusão. A intriga vai prosseguindo entre analepses e prolepses, vincadas estas pelas datações das cartas ou dos fragmentos memorialísticos, sem que alguma vez o leitor possa perder a inteligibilidade do todo, assim como a persecução da ação. Ou seja: estamos perante esse milagre, cada vez mais raro, de um livro que pode ser, simultaneamente, estudado e lido.
Como se não bastasse, à referida prestidigitação estilística - exímia e rara - Éric Chacour desmultiplica o seu romance numa diversidade de vertentes temáticas (os tais ramos da árvore de Descartes!): romance passional, social, cultural, e – imagine-se! – de mistério. No que diz respeito à questão do mistério, o autor avança com um narrador, um Eu/Moi, que durante dezenas de páginas não se percebe quem possa ser. Esse eu vai escrevendo a um Tu/Toi: Tarek, um jovem médico egípcio, pertencente à alta burguesia do Cairo, médico e filho de médico, fruindo do consultório do falecido pai em Dokki mas, ao mesmo tempo, e por um certo empenho social, usando também um dispensário para gente pobre em Moqattam.
Tarek casa com uma paixão de adolescência: a calma e inteligente Mira. A certa altura aparece a Tarek, no dispensário, um jovem árabe, Ali, pedindo-lhe para que ele fosse ver a sua mãe, que sofre de uma doença estranha. De novo o mistério! Só no final do livro perceberemos estar ante a doença de Huntington, que vitimará mais gente para além da referida mãe árabe. Ao fim de algum tempo assistimos a um triângulo afetivo perfeitamente consolidado: Tarek, Ali e Mira, contudo, a posição de Mira é ambígua: invocando desculpas várias, vai-se afastando de casa cada vez mais, em visitas algo duradoiras nas mais diversas localidades do Egipto. A traição, a culpa, o remorso assumido e a paixão cega acabam por minar a vida, outrora pacífica e estável, de Tarek, enquanto Mira, silenciosa e atenta, vai tudo lendo, percebendo e disso se esgueirando como se fosse uma sombra. Esta rotina envenenada vai-se arrastando até ao suicídio de Ali e à fuga desnorteada de Tarek para Montreal.
A partir deste momento o narrador decide tirar a máscara: é o jovem Rafik, filho de Tarek e Mira, e que esta, como forma de punição nunca autorizara que a família revelasse ao marido tal segredo. A partir daqui o ritmo da ação é vertiginoso: o Moi/Eu/Rafik assume-se como narrador e toma as rédeas da ação, com a conivência de Fatheya, a criada, e de Nesrine, a tia, irmã de Tarek. Rafik acaba por montar uma armadilha ao pai, não para o punir, mas para lhe dizer que ele lhe tem feito falta: “ Eis-nos de novo, não para nos reencontramos. Imaginei mil maneiras de te abordar e por trás de cada uma ouvia a voz de Fatheya (…) Então dirigir-me-ei a ti no francês de Mémie (a avó). E dir-te-ei o meu nome, que sou teu filho e que temos muito tempo a recuperar.” (p 326). No fim da obra percebemos que o “Ce que je sais de toi/ Aquilo que sei de ti” não é mais do que o solilóquio de Rafik, onde perpassava tudo o que conseguira saber da vida do pai e de nessa rede de sucessos encrustar a sua falha, a sua ferida.
À complexa urdidura desta escrita, urge ainda acrescentar três tópicos que me pareceram de suma importância: um, a Intertextualidade; o afogamento de Ali no Nilo/ o Antínoo de Yourcenar; a relação de Rafik com Fatheya/ o relacionamento do jovem Marcel de Proust com Francisca, a criada; Tarek gracejando pedindo um cavalo/ o Rei Lear de Shakespeare, etc.; dois, a relação da ação com a música nomeadamente com os versos das canções de Dalida; três, a caraterização de Mira, que raramente aparece como a tradição o costuma fazer, mas o autor opta antes por método singular: após dada ação com a mãe inscreve o nome desta com uma caraterística, que sobressai, no momento, na personalidade desta como um azorrague que a individua e pune: Mira-Metrónomo (p 135), Mira-Meia-Verdade (p 241), etc.
Tenho um certo fascínio pelos escritores que escrevem pouco e que não se deixam engolir pela célebre "bavardage", excluo deste a priori dois "dos meus monstros": Camilo e a Agustina", mas, na realidade, os primeiros exercem sobre mim uma estranha atração: Tomasi di Lampedusa, Jonathan Littlelle, etc., talvez Chacour, com este seu primeiro romance, acabe por entrar nesta minha galeria.
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Victor Oliveira Mateus
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