terça-feira, 21 de agosto de 2018


   Como eu próprio o experimentara, d. Bartolomeu, desde o início dos tempos da democracia, simulava respeitar a burguesia, os professores do colégio dos filhos, os advogados da família, os funcionários públicos, os empregados bancários, os profissionais de seguros, os polícias, mas tratava-se apenas de um fingimento social, nunca deixara de olhar para a classe média como uma classe rafeira, advinda dos fundos da sociedade, ocupando os lugares do poder, como verdadeiros apparatchiques, impondo a sua ordem burocrática e burguesa. Fizera-me ver que, há duas ou três décadas, os avós e os pais destes zeladores do boa consciência social, analfabetos, lavravam a terra a pés nus e enxada alçada, não havia dinheiro para um burro ou um boi que lhes arrastasse o arado, desconheciam o que era uma casa de banho, dormiam embrulhados em palha com os filhos à ilharga e sorviam a sopa da mesma escudela, primeiro o pai, depois os filhos por ordem etária, finalmente a mãe, os restos. Hoje, com a democracia, os pais tinham ganho reformas da segurança social, as câmaras municipais tinham-lhes montado água e luz em casa, subsidiado o levantamento da casa de banho e da cozinha, e os filhos, aqueles que ora confrontavam a ascendência aristocrata de d. Bartolomeu, tinham estudado na primária e na secundária com livros custeados pela acção social escolar (...). Numa geração ou duas, tinham passado de crianças ranhosas e grosseiras, de mente obtusa, enfiadas nos esconsos dos casebres dos pais, a senhores doutores urbanos (...).  Eram estes senhoritos burgueses de fibra inferior, aqueles que no passado não subiriam do porão das naus, que o chamavam às finanças inspeccionando os dinheiros da família Peralta Perestrêllo. D. Bartolomeu estava fulo, gritava pelos corredores da mansão, já lhe tinham matado o pai na prisão, já o tinham obrigado a fugir para o Brasil durante um ano, desgastando-lhe os rendimentos, já lhe tinham roubado o latifúndio, o maior do Baixo Alentejo, quereriam agora, porventura, que ele se pusesse a trabalhar, a abrir escritório de advogado, como um vulgar burguesito, como o era o seu advogado, filho de um fura bilhetes dos comboios suburbanos, munido porém de uma inteligente lábia na barra dos tribunais, raramente perdia um processo, fora por isso que lhe entregara, logo em 1979, o da devolução da herdade alentejana da família, cuja indemnização equilibrara as contas da família por muitos anos.
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 Real, Miguel. Cadáveres às Costas. Alfragide: Publicações D. Quixote, 2018, pp 129-131.
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