terça-feira, 28 de agosto de 2018


   Mas Santiago. Desde pequenino que gostava de ir brincar para ao pé da mãe, levava uma bola para dar pontapés, ou o caixote a abarrotar de pecinhas de Lego (...)
   É nesta mudez que mãe e filho se sentem próximos. É um código que apareceu naturalmente. Mas não há nisto só tranquilidade. Maria Clara preocupa-se, Santiago fala pouco ou nada desde que balbuciou as primeiras palavras. Como se informasse que sabe da existência da linguagem, mas não lhe apetece usá-la.
   Maria Clara vive portanto em dois compartimentos muito distintos, sendo um o silêncio empedernido do filho e o outro as consultas com os pacientes, choros e pedidos de ajuda, alucinados a esbracejar.
   Foi Nuno Maria, desde pequeno atento e inquieto e lúcido, que um dia questionou os pais, enquanto o irmão mais novo baloiçava o tronco, sentado na beirinha do sofá  (...)
- Vocês sabem que isto não é normal, certo?
e a mãe não comentou, e foi o pai
- Dá-lhe tempo, temos de lhe dar tempo
- Mas qual tempo, pai, quanto mais tempo pior
- As pessoas não são todas iguais
- Sim, grande novidade, pai, sabes o que é que eu estou a dizer, achas que o vamos ajudar a fingir que não se passa nada?
- Não fales de normalidade, o que é isso da normalidade, quem somos nós para definir o que é normal? (...)
   O pai ficava zangado mais tempo, a mãe só muito triste, e quando ficavam a sós
- O Nuno, caramba, sempre a atacar, sempre agressivo
- Está só preocupado, Francisco, não está a atacar, acha é que nós não nos preocupamos com o irmão
- Não nos preocupamos? Ai não nos preocupamos, Clara? Quanto exames de merda já fez? Quantos consultas e relatórios e mais não sei quê? E o que é que tu e os teus coleguinhas descobriram? Nada, porra nenhuma, tu desculpa lá, mas foda-se mas é para isto tudo
   Maria Clara não responde, uma coisa sabe bem é que com o marido ou com o filho mais velho, a dado momento de uma conversa, é melhor não dizer mais nada (...)
   E nestas ocasiões ela cala-se, afasta-se devagarinho, até eles não a verem.
   E atrás da primeira porta que encontrar. Deixa-se deslizar até ao chão e chora.
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 Carvalho, Rodrigo Guedes de. Jogos de Raiva. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2018, pp 64-66.
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