segunda-feira, 3 de setembro de 2018


   - O que é um segredo, mãe?
   É das palavras que mais cedo confundiu Santiago Sereno, não se percebendo, ainda hoje, se a assimilou, porque Maria Clara, apanhada na surpresa de todas as mães com certas questões
   - Um segredo, filho, então um segredo, deixa vá ver, um segredo é uma coisa que não se pode dizer
   - Não me podes dizer porquê?
   - Não, não é isso, estou a explicar-te que é uma coisa que nunca se diz, nunca se conta a ninguém
   - Mas aqui neste livro diz "e ele foi a correr contar o segredo que tinha escutado ao encostar o ouvido à porta"
   Maria Clara corou, conteve um sorriso para não confundir ainda mais o filho, ainda tão pequenino, com o olhar pediu a ajuda dos irmãos que estavam também na sala, Nuno Maria a estudar e Ana Teresa a espreitar a televisão, e eles riram-se com gosto
   - E agora, doutora Clara, como é?
percebendo todos que Santiago começara a sua dolorosa caminhada de estupefacção com o mundo e com o que as pessoas são quando ninguém está a olhar. Passará a vida a fazer perguntas que soam descabidas e talvez não sejam, quem poderá dizer.
   Hoje, ao olhar enternecida o filho nos jardins do hospital, a passear o rafeiro velhote e a conversar com Sousa, O Xerife, a doutora Maria Clara continua sem saber de que tanto falam, é lá com eles, entendem-se, é o seu segredo. Como nunca foi a correr contar a ninguém, muito menos a Santiago, o segredo de Jorge Sousa.
   Passou muito tempo desde a chegada do Xerife ao hospital, alguns dos que conheceram a história já se reformaram (...). O dia em que a chamaram para ir depressa, era preciso acudir a um homem que tinha chegado descontrolado. E ela desceu e deu de caras com um animal.
   Desgrenhado, olhos muito abertos sem nunca pestanejar, as veias do pescoço a empurrarem a carne (...) pontapés nas cadeiras, no garrafão grande de água, que está num suporte de plástico a fazer o pino, pegou num extintor, rodopiou outra vez
   - Larga caralho, larga-me, tenho de as ir buscar, tenho de as ir buscar
   Hoje, ao ouvir a filha, no restaurante onde jantam com Pedro Gouveia
   - Como é que deixámos isto chegar aqui, mãe? Em nome de quê, mãe?
apercebe-se da enorme diferença entre os segredos, se fossem precisas provas da diversidade doentia de tudo o que nos rodeia, aí estão os segredos, uma palavra única, tantas formas de lidar com ela.
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  Carvalho, Rodrigo Guedes de. Jogos de Raiva. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2018, 213-214.
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