quarta-feira, 12 de setembro de 2018


   Admito que dou a impressão de navegar em plena ópera oitocentista. Sofrendo como sofro, nem sequer tenho a prudência de fugir ao ridículo. Se calhar, até isso nos é interdito: uma dor de aparência normal.
   Mas de todo este caos, uma pergunta se levanta: seremos obrigados a admitir que, para a nossa raça, a ordem é impossível? Suponho que não é caso, Laurent, para pedir a tua opinião.
(...) Com quanta ingenuidade te prestaste ao jogo perverso dos Munaris! Mas eu amo-te. E, porque te amo seguir-te-ei onde quer que vás. (...)
   São dignas de espanto, as naturezas como a minha. Julgam-nos fracos, crêem que o mais pequeno sopro nos derruba. Enganam-se: somos uma espécie que não cede. Não creio, Laurent, que possa ceder. Sabes que te amo e que não posso deixar-te; mas agora vejo-te (não, dantes não te via) e amo-te agora sem ilusões sobre aquilo que és.
(...) Decidi ir ter contigo sem demora: parto depois de amanhã. Entusiasma-me a ideia de voltar a ver-te. Mas o entusiasmo não é tão alienante que me faça aceitar a desordem que tu, por estupidez ou ingenuidade, escolheste para ti. Amo-te, sem dúvida, mas não me deixarei contaminar por ti.
(...) E já que continuo a amar-te, terei de reconstruir aquilo que foi despedaçado.
   Conta comigo dentro de três dias em Paris. É possível que, quando chegar, ainda nem tenhas recebido esta carta nem as que a precederam. Não importa: mais do que contigo, foi comigo próprio que falei.
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 Coccioli, Carlo. Fabrizio Lupo. Lisboa: Edições Cotovia, 1991, pp 99-102.
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